25 Jan
25Jan

Desde 1978 o cinema independente dos Estados Unidos encontra no, hoje conhecido como Festival de Cinema de Sundance, uma porta aberta para acolher novos cineastas nesta ceara da dramaturgia e do mercado audiovisual. Foi por esta porta que cruzou a jovem promissora Celine Song. Uma diretora e roteirista sul-coreana-canadense que mora nos Estados Unidos. Song marca sua estreia nas telonas com o visceral Vidas Passadas, uma história dolorida, mas arraigada de muitos sentimentos humanos e verdadeiros que amigos leais e sinceros podem viver e sofrer diante das escolhas e oportunidades que cada lado oferece. 

Greta Lee e Teo Yoo dão vida aos protagonistas desta história Nora Moon e Hae Sung, dois jovens que viveram uma intensa infância como melhores amigos e parceiros da vida, da escola e das brincadeiras. Quando a família de Nora precisou migrar da Coréia para a América, este laço de amizade se rompe de forma brutal e dolorida para ambos. Hae Sung sofre ainda mais com este rompimento e Nora tenta reconstruir sua vida em Nova York alimentando de seus sonhos profissionais. A janela narrativa do filme é de um espaço-tempo de 24 anos, quando os dois, em Nova York, reencontram-se. Neste encontro as emoções se afloram e a amizade e o amor se eternizam nos diálogos, nas risadas e nas infinitas possibilidades do que poderia ter sido feito se...   


A metalinguagem de “Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças” 

Quando o espectador percebe a referência do clássico de 20 anos atrás numa simples videochamada entre Nora e Hae Sung, é impossível segurar a expectativa das próximas cenas. Na obra de Michel Gondry assistimos ao que “poderia ter sido” diante de um sentimento que nos teria moldado de forma diferente daquele em que vivemos. Hae Sung molda essa realidade tentando imaginar o que teria acontecido se... isso... se aquilo... O que teria sido dessa amizade se ela tivesse evoluído para outros sentimentos mais íntimos... Nora Moon, filha de pai escritor, sonhava com sua carreira de escritora consagrada internacionalmente. Quando criança, diante da pergunta de seu melhor amigo, “com o que você sonha?”, ela respondia, “ganhar um prêmio Nobel”. Anos depois, em uma das conversas por vídeochamada, a resposta não mudava, mesmo ela dizendo, “sonho com um Pulitzer”. 

Hae Sung sentia-se como um cara normal, com um emprego normal, com um salário normal. Ele via Nora Moon como uma mulher realizada, acima do normal, ambiciosa, “psicopata”, sonhadora e centrada em seus objetivos. Ela não era normal e, ele acreditava que ela era aquele tipo de mulher grande demais para a Coreia, grande demais para Seul, grande demais para ele... Com isso, Celine Song introduz na narrativa o belo conceito “In-Yun”. Uma palavra que não possui tradução exata para outras línguas, mas, que significa este “e se...”, estas infinitas possibilidades... estas camadas de possíveis vidas passadas, que poderiam ter sido real e vivo. O termo remete às possíveis conexões, camadas que nos conectariam impulsionadas por um simples toque na calçada remetendo a algo que se conectou em outra vida e que se reencarna nesta em que vivemos agora. 

Não podemos nos esquecer de Arthur (John Magaro), o marido norte-americado de Nora. Também escritor, Arthur percebe uma forte conexão entre a esposa e o marido que o estabiliza, mas não o deixa diminuto diante do que assiste. Hae Sung, de fato, fica feliz pelos dois. Fica feliz pela vida de Nora, mesmo afirmando que doeu muito nele ter conhecido Arthur e percebido o quanto ele ama sua paixonite de infância. Numa das cenas mais belas do filme, Hae Sung afirma que Arthur tem o “In-Yun” com Nora. As vidas deles se encontraram nessa. 


Quando o silêncio diz mais 

A escolha cinematográfica de Celine Song é formidável! Ela decide colocar à nossa frente diversas cenas com seus personagens (a maioria delas com Nora e Hae Sung) em completo silêncio. As vezes se olhando, as vezes disfarçando o olhar para o que os cerca. Cenas que duram segundos, mas que provoca em nós aquela sensação de que ficaram horas naquele silêncio ensurdecedor. Um silêncio que gritou muito para cada um de nós e para eles. Essa sensibilidade fílmica é um primor para quem consegue colocar diante das câmeras com tanta fineza e sinceridade. Um roteiro que não foi escrito, mas que comporta toda uma história. A insegurança de Arthur diante da visita de Hae Sung em Nova York é tão sincera e tão angustiante que nós começamos a nos sentir da mesma forma que ele ao transpor pra nossas vidas situações semelhantes a que estamos assistindo. Não é todo cineasta e roteirista que consegue proporcionar isso. 

Para se conquistar coisas novas, é preciso deixar para trás algumas outras. É dolorido afirmar isso, mas, Nora precisou deixar Hae Sung para trás. Isso significa muito mais do que deixar o país; do que enfrentar os desafios da migração; deixar a cultura, os costumes... Não! Nora Moon deixou seu amigo, deixou aquela criança que ela afirmou querer casar com ele no futuro. Nora Deixou aquela criança chorona de nome coreano para trás para dar lugar a uma escritora ambiciosa e uma mulher plenamente realizada. Em paralelo e – talvez não muito honesto – é inevitável nos perguntar: O que Hae Sung deixou para trás? O que ele conquistou? Quem ele é hoje? Um homem adulto, com um passado no exército, um namoro que não vingou, um cara normal, com um emprego normal, um salário normal. 

Na cena final, o choro de Nora Moon é um choro que machuca, que dói e nos dilacera de dentro pra fora. Talvez aquelas infinitas possibilidades do que poderia ter sido mais a assustou do que a deixou feliz. Um dia, cada um de nós há de olhar para trás e refletir sobre as escolhas que fizemos, os amigos que deixamos, a vida que poderia ter nos deixado mais felizes. E, olhando para o hoje, iremos perceber se a plena realização do que nos tornamos, de fato, foi a melhor escolha... Mas, como Nora Moon afirmou: “a vida me trouxe até aqui, portanto, estou onde eu deveria estar, dividindo e vivendo esta vida com quem eu precisei estar”. 




Por Dione Afonso  |  Jornalista

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