29 Mar
29Mar

Dizem que o que acontecesse entre quatro paredes, entre quatro paredes permanece. Relações, paixões, brincadeiras, gargalhadas, brigas, cantoria devem permanecer no ethos vivido. No entanto, até mesmo as paredes têm ouvido. E o que elas ouvem não fica mais em segredo. Elas alimentam uma corrente fiel de telefonia sem fio e popular.

Infelizmente até mesmo a programação da TV do vizinho é compartilhada. Sobretudo aqueles que perdem a noção do ouvir e do degustar uma boa música. E quando essa programação te atormenta às 3 horas da madrugada? Coisa cheia de meios termos são os vizinhos. Não sabemos se gostamos ou se aturamos. E mais: não demonstramos, sequer, o mínimo de interesses em, pelo menos, saber do nome. Eles são briguentos, mal educados, perdem a noção de espaço e de divisa da escritura do próprio imóvel.

Nada é mais desconexo em nossa rotina urbana que os vizinhos. Eles são de todos os estilos possíveis e inimagináveis. Percebemos desde o casal de idosos até a jovem descolada, calada, de estilo ousado com roupas pretas e cabelo curto. Com expressão de poucas convivências fraternas, mas, que, percebe que se alguém corre riscos, ela corre a socorrer. Não destila nenhum diálogo, mas, apenas doa um gesto de caridade salvando a vida de alguém. Por outro lado, o casal de idosos são meigos, divide uma sobremesa que fez demais sem querer (ou porque estava pensando exatamente no vizinho) com um vizinho que nem ao menos sabe o nome. Ali o sorriso e o diálogo florescem. Perguntam desde o nome até sobre relações mais pessoais. E se eles descobrem que você é um cara solteiro, que vive do trabalho, eles se sentem na responsabilidade de serem ainda mais cordiais e gentis.

Esse é o universo dos vizinhos. Nunca saberemos se são pessoas honestas, felizes, bem de vida, divertidos, fechados, solitários. A única coisa que sabemos é que fazem parte de nós. Em muitos casos são nossa própria comunidade. Mesmo sem saber quem são. Todo mundo é vizinho de alguém. Todo mundo torna-se a preocupação de alguém. Todo mundo divide a rua, o prédio, o lixo da calçada, as caixas do correio com alguém. Se é alguém conhecido ou não, pouco importa. O que importa mesmo de verdade é que o vizinho, por mais rabugento que seja, é o ser humano mais próximo de nós. Qualquer movimento fora do comum que acontecer conosco, é inevitável que seu vizinho se torne o primeiro suspeito. As paredes têm ouvidos, lembra?

Quantas vezes nós falamos de fronteiras geográficas, de problemas de transição e de direito de ir e vir? Mas, também, quantas vezes nós colocamos limites em nosso imóvel, cercamo-nos com grades, cercas, proteção em cacos de vidro, arames farpados? A cada dia nos afastamos cada vez mais de quem é o nosso próximo. Próximo, não só no sentido cristão, não. Mas, falo de um próximo no sentido humano da palavra. Temos a cada dia, cada vez mais medo de nos aproximar, de ficar perto. E, quando somos “obrigados” a isso, nos sentimos aliviados, porque aí podemos tirar a culpa que confere a nós, e coloca-la sobre um sistema que te obriga a se afastar, a não se aglomerar, a não abraçar e a não deixar mais, na porta do seu vizinho aquela penca de banana que, por descuido, você comprou a mais, e, para não estragar, dividiu com quem divide a vida toda a parede com você.

Hoje, demos um jeito até de não dividir mais o mesmo varal. “Não quero que minha intimidade seja observada pelos outros”, afirmamos. Mas, na verdade o que desejamos é que não sejamos mais obrigados a dizer “bom dia”, ou ter que ouvir um “quanto tempo não te vejo, como você vai?”. Pois assim, eu não preciso me explicar, não preciso conviver, não preciso conversar e nem sorrir pro meu vizinho. Afinal, ele é chato, observador, cheio de curiosidades. E, nesse instante eu me esqueço que também sou vizinho dele. Posso não carregar essas mesmas qualidades, mas, com certeza aquele sentimento de proximidade e de humanidade, aos poucos eu também posso perder.  




Por Dione Afonso, jornalismo PUC-Minas

Foto: Famosa rua de Nápoles, na Itália / Foto de Orna Wachman /  via Pixabay.

09/07/2020

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