29 Mar
29Mar

Parece-nos que Willian Shakespeare resolveu modernizar seus romances para o século XXI. Tudo começa muito semelhante ao Romeu e Julieta do século XVI. A tragédia românica do escritor inglês consagrou-se como um dos maiores clássicos da literatura mundial e é considerada uma das obras mais enigmáticas de Shakespeare. 

Verona, na Itália, torna-se palco do maior duelo entre os Capuleto e os Montecchio. Duas famílias da alta estirpe social duelando-se afim de conquistar o prestígio e o poder soberano de governar o país. Não governar em nome dos cumprimentos burocráticos, administrativos, políticos e nem muito menos em nome dos cumprimentos do ofício. Não! O que interessa mesmo é o governo arrogante, em nome da riqueza monetária, prestígio real, o requinte da pele branca e a autoridade enfática do sobrenome e do brasão tradicionais. 

Parece que a história se repete em 2019. É dezembro, ela é uma enfermeira, ele é um produtor de vídeos do canal YouTube. Moram em Wuhan, na China. Aqui o duelo não é entre duas famílias que buscam prestígio, nem é uma história de um amor proibido. Vamos deixar isso acontecer somente nos livros, pois na China, uma linda história de amor é interrompida por um mal improvável: um vírus. 

O mundo começou a viver sobre a ameaça de uma nova doença que está se alastrando de maneira assustadora. Na Europa, países contabilizam 2.000 novos casos confirmados a cada 24 horas. Identificado como COVID-19, o coronavírus está realizando o sonho de muitos brasileiros, ou melhor, não traz nenhuma novidade a nós. O tão antigo novo vírus não está afetando nossas rotinas fraternais, relacionais, de convivências saudáveis e familiares. Devemos evitar sair de casa; evitar aglomerações; evitar contato com as pessoas; evitar cumprimentar; evitar abraços, carinhos, proximidade; evitar tocar nas pessoas; evitar reuniões para comemorar, celebrar, brincar... não parece novidade, não é mesmo? 

É só continuar vivendo no mesmo ritmo em que há anos adotamos como estilo de vida: indiferentes! Parece-nos que aquela máxima literária, “nenhum homem é uma ilha, isolado em si mesmo” do poeta inglês John Donne, não encontra referências sólidas em nosso tempo. A cada dia mais estamos em busca de confirmações de que nosso estilo de vida é o que deve prosperar. E, quando as referências confirmam nossas ações, sentimo-nos aliviados só de ter a certeza de que na nossa ilha ninguém irá atracar seu barco do encontro, da relação, do estar próximo. 

O “novo vírus” afeta sim, as relações de mercado, o capital, a cultura pop e a indústria do entretenimento. Afeta as relações internacionais, as exportações e importações; afeta a bolsa de valores; afeta a economia; afeta os cofres dos bancos nacionais; afeta a sobrevivência da minha ilha. Ninguém pode chegar nela e buscar refúgios, ninguém pode ver nela uma âncora de salvação.

A cada dia o individualismo, a indiferença e o egoísmo estão somados à falta de compaixão e de humanidade entre nós. Não nos preocupamos com os idosos nem mesmo das nossas casas. Nos últimos cinco anos, as casas de acolhidas para idosos cresceu 10 vezes mais, como nunca havia crescido na história. Estamos abandonando aqueles que mais precisam do nosso cuidado, mas é que estamos preocupados demais em proteger e salvar a nossa ilha. Estamos ocupados com as aulas da faculdade; ocupados com as contas do fim do mês; ocupados com as Redes Sociais; ocupados com os mais de 500 stories que precisamos conferir; com as mais de 1000 mensagens que estão no WhasApp sem responder; estamos sempre ocupados demais.

E assim, o que parece ser novo, na verdade só confirma o que já estamos vivendo há anos. O tão antigo novo vírus da indiferença nos confirma em nossa quarentena, nosso isolamento para que não nos contaminemos da alegria e das histórias dos idosos, que não nos contaminemos do contato e abraços das crianças e do carinho amoroso de uma gestante. Homens, mulheres, crianças, jovens, idosos, negros, brancos, héteros e LGBT+, todos estão numa mesma ilha. Não temos pra onde correr. Que, com bom senso possamos adotar as regras de prevenção contra os vírus letais e possamos nos unir contra o vírus da indiferença.

E Romeu dizia que “só ri das cicatrizes quem nunca foi ferido”, e Julieta insiste para que ele abandonasse tudo, seu nome, sua tradição, sua herança, para viver esse grande amor que florescia entre eles.



Por Dione Afonso, jornalismo PUC-Minas

Foto: Selling of my photos with StockAgencies is not permitted / via Pixabay / Divulgação

19/03/2020  

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