Sou estudante de jornalismo. Um aspirante à vida pública da comunicação e da informação sempre em primeiro lugar com verdade, beleza e bondade. São os valores que sempre carrego comigo nesse vasto universo maravilhoso da comunicação. Uma das minhas referências no jornalismo uma vez disse em uma de suas crônicas que essa história de “pauta quente”, “pauta importante”, “grande assunto”, “fato grande”, “grande reportagem” é uma regra ilusória. Ela diz que quem faz a pauta é o jornalista. É ele quem vai decidir se determinado assunto é de relevância, importante, grande ou pequeno. Se o jornalista não quiser, ele não vai fazer com que a queda de um grande avião se torne uma grande e valorosa reportagem, mas se ele quiser, uma batata doce roxa que cai no chão de uma frágil sacola das mãos de uma senhora, pode se tornar o assunto mais comentado numa matéria de jornal ou em suas redes sociais.
É o jornalista que está na rua. É ele quem vai atrás da notícia. O primeiro contato com o fato é sempre ele que faz. Quem apura é ele. Já pensou se você, jornalista, fosse desafiado a “fazer jornalismo” da janela de sua casa? Todos os dias, narrar com precisão as notícias que você é desafiado a fazer só olhando de sua janela? A pandemia talvez tenha te despertado a olhar a vida mais de sua janela ao invés de ficar espreitando nas janelas alheias com a intenção de roubar a notícia do colega, não é mesmo? Já que o seu colega de estágio foi capaz de dar grandiosidade à notícia dele, não é mesmo?
Então, minha matéria de hoje é sobre batata doce. Exatamente! Essa que caiu no chão numa ensolarada tarde de segunda-feira num sacolão na área nobre da Pampulha em Belo Horizonte, capital de Minas Gerais. Fui fazer compras com meu irmão. A cozinha estava sem frutas e legumes e alguém tinha que abastecer a fruteira. O sacolão não estava tão cheio, mas haviam pessoas o suficiente para que houvesse filas nos caixas. Quando estava selecionando alguns limões eis que uma senhorita estava lutando com sua sacola de batatas doces, aquelas roxas quase caindo no chão porque a frágil sacola biodegradável estava se rasgando. Imediatamente eu fui ajudar a socorrer. A mulher de óculos desenhados, ousados, inclusive, se assustou quando recebeu ajuda de um jovem desconhecido que só queria evitar que o legume se rompesse no chão.
“Cuidado com o coronavírus!”, disse ela assustada e até mal educada. “Desculpe-me senhora, eu só quis ajudar”. “Mas, e suas mãos? Não podemos arriscar”. Pedi desculpas novamente e continuei com o meu instigante trabalho de selecionar bons limões para a minha compra. Eu só quis ajudar. E nessa confusão toda uma batata rolou no chão e a senhorita agradeceu e saiu para longe de mim. Eu não podia me certificar que eu estava imune à covid-19, de fato ninguém está. Meu ato foi de reflexo, rápido e sem pensar. Eu só quis ajudar.
A pandemia afastou-nos mais do que imaginávamos. Afastou-nos mais de que deveria, no entanto, talvez o tanto que desejávamos há um bom tempo. Descobrimos que podemos nos virar sozinhos, uau! Temos duas mãos, e podemos socorrer as batatas sem que elas caiam no chão. A pandemia aliviou um peso que há muito tempo carregávamos nos ombros: o de ajudar e estender a mão para o outro. Agora eu não posso mais me aproximar, não posso tocar nos outros. Quão grande alívio.
E então, quando tudo isso acabar, seremos sobreviventes. Guerreiros por termos vencido a guerra. E sozinhos! Sem um exército para lutar do nosso lado. Já que vencemos sozinhos, agora eu posso continuar minha vida, eu não preciso mais me preocupar com os outros, já que durante a pandemia eu descobri que não preciso de ninguém. Não dependo de ninguém. Que na guerra, eu venci. Sagrada seja a santa pandemia!
A pandemia nos impôs o isolamento social para que não corrêssemos o risco de infectar uns aos outros. Que, sozinhos, cada um na sua casa, o risco do vírus circular era menor. No entanto, estamos infectados pelo nosso próprio vírus: o vírus do individualismo e estamos doentes: solidão, tristeza profunda, depressão e sentimentos suicidas. Pois é. Nos autoinfectamos com nosso próprio vírus. Nós o criamos. A pandemia nos obrigou a não ajudar mais quem estava quase caindo e uma mão sua evitaria um trágico acidente. Ou talvez a pandemia nos presenteou só pelo fato de eu não gastar mais o meu precioso tempo com o outro. E o que eu estou fazendo com o tempo que a pandemia me deu de presente? Agora sobrou mais tempo para mim... E aí?
O tempo que eu ganhei, eu acabei perdendo, pois eu não tinha mais com quem conversar. Em casa só restava eu com minhas batatas doces. A pessoa que tentou me ajudar quando a sacola estava se rompendo poderia ter sido um bom amigo. Mas eu perdi essa chance. Não quis. Estava tão preocupada com a guerra que eu estava lutando que nem percebi que no campo de batalha há tantos outros lutando pelo mesmo objetivo: sobrevivência. “Ao vencedor, as batatas” (ASSIS, Machado. “Quincas Borba”. 1891).
Por Dione Afonso, jornalismo PUC-Minas
Foto: Pandemia e solidão. Foto de Orna Wachman via Pixabay.
13/08/2020