29 Mar
29Mar

Provavelmente você já deve ter ouvido falar do Caminho Dourado do Reino de Oz. Trata-se de uma aventura fictícia narrada pelo estadunidense Lyman Frank Baum, lançado em 1900, no auge do século XX. Nele a pequena Dorothy, que vive com os tios no Kansas, é lançada por um ciclone no fantástico mundo de Oz. O interessante desse mundo é que ela está sobre os caminhos dourados, fascinantes, até, que a levam a um Reino esplendoroso.

Mais fascinante ainda são as companhias que Dorothy barganha pelo caminho. Um espantalho, um boneco de lata e um leão que a história o chama de Leão Covarde. O espantalho, segundo a história não é inteligente, não tem cérebro, então, é impossibilitado das faculdades do pensar. O boneco de lata, um lenhador, enferrujado pelo tempo e pela chuva, é desprovido de sentimentos, não é capaz de amar por não ter coração. Já o leão, por ser o animal símbolo da coragem e da proteção, o Rei da Natureza, é medroso e incapaz de defender alguém.

Cada um deles tinham um sonho: cérebro, coração e coragem! Ao unir-se a Dorothy, juntos começam a percorrer o caminho dos sonhos de cada um: um caminho dourado. Fico a pensar nos caminhos que percorremos hoje, nos passos de nossas calçadas, douradas para uns, suja e fria para outros. Aqui, o Reino de Oz não é tão simples assim. Alimentamos sonhos não mais importantes, mas, mais essenciais: ao invés de cérebro e inteligência, muitos correm nas calçadas em busca de emprego, alguns até se arriscam e vendem seus doces, amendoins e pipocas. Nada mais reconfortante que aquele cheiro de pipoca feito na hora, no limiar das 18h quando estamos correndo para não perder o ônibus em horário de pico. Outros, ao invés de coração e coragem, sonham em ter um cobertor para substituir o papelão nas cruéis noites de inverno que maltratam aqueles que, nos caminhos das calçadas, encontram refúgio, casa.

O Espantalho desconhecia até mesmo o próprio nome. Sem cérebro ele não era capaz de pensar. O Caminho para Oz sobre a estrada Dourada também lhe era desconhecido. Parece-nos que pelas calçadas de hoje também muito estão desprovidos de seus cérebros. Virar noites e dias nas calçadas faz com que esqueçam o próprio nome, identidade, de onde vieram. A calçada mais que um caminho, é um lugar de vivência. Enquanto isso, entre passos e compassos de pessoas bem vestidas e atarefadas com o seu dia corrido e cheio de ocupações, parece que ter cérebro não é a maior das virtudes. Mesmo com cérebro e dotados de inteligência, falta-lhes conhecimento com o mais essencial: olhar para os que dormem ali, nas calçadas, e se oferecer para que caminhem com você em busca de identidade, de nome, de um cérebro capaz de os fazer mais humanos e menos “espantalhos”.

O Espantalho de Baum acreditava que era horrível ser feito de carne osso, pois assim é inevitável que se tenha “fome, sede, frio”. Nas calçadas de hoje, longe de serem caminhos dourados, vivem os de carne e osso enquanto espantalhos caminham entre eles durante o dia todo.

A história não para por aí. Dorothy Gole se depara com um homem de lata, um lenhador, segundo a história. Enferrujado, não conseguia virar o pescoço, abaixar a mão e nem se reclinar, todas as juntas estavam enterradas na ferrugem. Ter inteligência, cérebro, de nada valiam se ele não tem um coração. Para o Lenhador de Lata, viver sem coração é estar desprovido de todo e qualquer sentimento, desde o mais puro amor até o mais temeroso ódio.

No caminho dourado, um homem de Lata percorre atrás do sonho de ter seu coração de volta, pois, segundo ele, a felicidade mora no coração, e se chama amor. Um amor que alimentou a vida inteira por outra pessoa. Quantos homens de lata também vivem sem amor, sem empatia, sem senso de humanidade e fraternidade pelas calçadas hoje.... Quantos, quantos de nós, sem coração, estamos enferrujados e incapazes de nos inclinar a estes que, também estão à procura de seus sonhos.

Por fim, a história nos apresenta o Leão Covarde. Trata-se de uma personalidade desprovida de qualquer autoestima. Falta de firmeza no que se é e descrença total nas próprias capacidades de ser e fazer algo bom, importante, sadio e grandioso.

Muitos podem cair nas calçadas da vida por desacreditarem no próprio potencial. Desacreditam que nasceram humanos como qualquer outro humano e com os mesmos sonhos e condições de realiza-los. O que impregna a sociedade hoje de profunda maldade são aqueles que se acham os donos sociais da estrutura mercadológica da humanidade. Um sistema que tem autoridade o suficiente para decidir que um grupo nascerá para comandar as engrenagens do lucro, da riqueza e do poder e um grupo existirá para viver nas mais baixas condições suburbanas do subumano, da pobreza e até cair nos esgotos das calçadas. As periferias existenciais humanas.

Somos covardes, por mais que sejam importantes e regados de vanglória o nome que carregamos. Somos covardes por não aceitar sermos chamados de irmãos os que não têm uma casa e condições mínimas de pôr comida na mesa. Somos covardes por sentir ameaçados pelos que fazem das calçadas de nossa cidade o único lar que têm. Somos covardes por pensar sempre, em primeiro lugar, nas nossas seguranças, quando uma ameaça global se instaura sobre nós e, só depois, - caso lembre – pensar nesses desprotegidos que a roda da fortuna criou e os lançou nas calçadas.

Uma história ficcional e infantil pode estar mais próxima de nós do que podemos imaginar. A busca pelos próprios sonhos, podem nos colocar em caminhos dourados, mas, que o brilho não nos venha cegar. Nem tudo o que brilha, brilha para mostrar o caminho certo. Muitos brilhos nos turvam os olhos para que não enxerguemos, de fato, o que de real é preciso enxergar.

Podemos ter cérebro, coração, coragem. Mas usar com sabedoria essas ferramentas é a grande questão. E a primeira etapa de tudo isso é entender que todos, homens e mulheres de toda e qualquer parte da terra, foram criados com cérebro, coração e coragem. São os três “Cs” dessa crônica indispensável para o nosso crescimento humano e fraterno. Cérebro para conhecer melhor os habitantes das calçadas; coração para ter mais empatia e fraternura com eles; coragem para denunciar um sistema que os lança nessas condições e, coragem, também, para nos fazer próximos deles como verdadeiros irmãos.




Por Dione Afonso, jornalismo PUC-Minas

Foto: “Caminhos Dourados de Oz”. Parque Temático abandonado de O Mágico de Oz idealizado pelo empresário Grover Robbins na cidade de Beech Montain, Carolina do Norte – Estados Unidos. Foto: Johnny Joo. 

07/05/2020

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