Desde 1984, o Edifício Juscelino Kubitscheck da Praça Raul Soares em Belo Horizonte era agraciado pelo enorme relógio luminoso no terraço de seu prédio. Há quarenta anos as horas embalaram paixões e marcaram encontros e desencontros no centro da cidade mineira. Com visibilidade longa, muitas horas foram marcadas para nunca mais esquecer do coração e da memória de diversos cidadãos de Minas Gerais.
Mas um dia o relógio parou. As horas estagnaram-se no belo dia de sol. Quente e seco na capital. Era como se o próprio sol deixasse de seguir o seu percurso. É como se na cidade algo tivesse morrido e partido para sempre. Muitos cidadãos sentiram-se órfãos quando a empresa que mantia o relógio tomou a decisão de desliga-lo. Não era só um relógio! Diziam. Ele era minha companhia nas madrugadas frias. Ele era a luz da esperança que me ajudou a vencer a depressão. Ele era a minha alegria sempre quando eu deixava o expediente. Eu o namorava quase todas as noites. E, ele, puxava as minhas orelhas informando que eu precisava desligar a luz e deitar.
É instigante como que algo tão pequeno e, talvez, tão trivial, possa significar tanto na vida de tanta gente. Um apego descomunal a algo que nunca nos pertenceu, mas que nos prendeu por quase toda a vida. E, quando ele decide partir e ir embora, parece que está levando algo de nós. Esquartejando-nos e desaparecendo, para sempre. Quantas horas importantes ele não marcou por toda a vida, não é? A hora que demos o primeiro beijo no banco daquela praça. A hora que a campainha do prédio em frente tocou e eu acolhi meu melhor amigo no “apê” novo. A hora que minha avó também decidiu partir. A hora que eu terminei aquele livro fantástico... Das muitas horas que aquele relógio marcou, agora resta a hora que ele próprio fez história. A hora da sua partida. Não nos importa mais o fato de algo estar faltando nas nossas noites frias da capital. Ainda temos o café preto pra nos aquecer. Ainda temos o pão de queijo minas pra marcar a hora certa de ser feliz de novo.
Agora, a hora que importa mesmo, é se, seremos capazes de seguir o ritmo cotidiano de nossos afazeres essenciais. Entre esses, o de continuar não perdendo a hora. Não perder a hora de salvar quem está em apuros. Não perder a hora de estender a mão e levantar quem caiu. Não perder a hora de se levantar da cama e dar um sentido novo pro seu dia. Não perder a hora de ir correndo pra perto de quem ama e dizer que não pode perde-la mais uma vez. Não perder a hora de roubar aquele beijo. Não perder a hora... O nosso relógio nunca pode parar. A vida continua, e as horas, com ou sem relógio, continuam correndo...
É muito comum em cidades de interior, sobretudo de Minas Gerais, cidades pequenas, poucos habitantes, ostentarem no alto da torre da matriz um relógio triunfal. Geralmente, a torre da matriz é o ponto mais alto dessas cidades, por isso, onde colocam-se os relógios. Lembro-me de minha cidade de origem, Espera Feliz, situada na Zona da Mata mineira, exatamente nas divisas de Espírito Santo e Rio de Janeiro, e do dia que o relógio parou. Nossa, a pequena cidade ficou totalmente perdida no tempo e nas horas. Vi como que um sinal desligado pode fazer todos perderem o rumo. O relógio da matriz parou! Foi assunto na cidade por semanas... Quantas vezes marcávamos nossos encontros na praça da matriz e não tirávamos os olhos do relógio...
E aquele pai ansioso pela chegada de seu primeiro filho, sentado lá no alto, na praça do hospital... Este não tirava mesmo os olhos do relógio da matriz... Uma distância considerável, mas ele tinha bons olhos, a ponto de marcar, pelo relógio da matriz, o nascimento de seu primogênito que o batizou de Sebastião, o santo padroeiro daquela igreja.
Idas e vindas, choros e sorrisos, quantas emoções um relógio pode memorizar entre um ponteiro e outro. Hoje, o substituímos pela era digital. Os relógios saíram das torres, dos prédios e dos pulsos e foram para a tela dos celulares, smartphones. Com dois toques na tela, e a hora aparece como num toque de mágica. Seu controle é automático, assim como a vida também tem ficado. Automática. Seguimos com olhos vendados rumo a um sistema maquinário digital no qual fazemos o que a roda comercial nos pede. Uma vida automática passa a ser dirigida pelos códigos virtuais que alguém os criou e o classificou como regra universal. Ah, mas os relógios agora, seguem, à risca a hora de Brasília. Agora ele não falha mais.
Mas o ser humano continua falhando. E, assim, vamos perdendo a emoção daquele milésimo de segundo. A sensação e a adrenalina daqueles dez segundos que mudariam minha vida. O despertador me tira da espontaneidade da vida e me obriga a entrar no sistema correto, sem erros e sem atrasos, porque os códigos não me deixam mais errar.
Charles Lutwidge Dogson [1832-1898], um escritor anglicano britânico mais conhecido como Lewis Carrol é o autor de Alice in Wonderland. Uma literatura enigmática que transporta uma jovem moça a um mundo de fantasias paralelo ao real. Alice conhece um Chapeleiro maluco que, por algum motivo a aguardava. Quando a avista, ele tira de seu paletó um desses relógios de bolso, e, ao consultar as horas, ele pergunta “que dia é hoje?”. Alice, sem entender, interroga-se como que um relógio, ao invés de marcar as horas, marca os dias! O Chapeleiro, enfim, afirma, “você está dois dias atrasada, Alice”. No País das Maravilhas, Alice vive um outro tempo. O Chapeleiro a instrui dizendo que para o tempo, as horas são como um piscar de olhos. Nunca é tempo perdido, não importa o que esteja a fazer.
O que vale é se nos importamos com o que fazemos no tempo que temos. Um piscar de olhos pode durar um milésimo de segundos, ou pode durar a eternidade. De tanto ficarmos esperando a hora certa, o momento certo, a oportunidade certa, o ano certo, o dia certo... podemos estar “dois dias atrasados”. O relógio pode parar, mas o tempo continua “voando”, como afirmam os exagerados mineiros, não é mesmo?
Não somos donos do tempo. Sabemos que quem tenta controla-lo não tem uma experiência muito positiva. O tempo é indomável, não domesticado. Nem mesmo nas histórias de ficção, quem tentou enganar o tempo não se deu muito bem. E isso nos ensina uma única coisa: não somos senhores do tempo. Somos os construtores dele e o construímos para ficar na história daqueles que virão. E as horas continuarão sendo contadas, ponteiro a ponteiro, ou a cada toque do despertador. Que continuemos a encher de belas recordações cada minuto contado.
A nossa grande tentação é querer, a todo o custo, controlar o tempo. Querermos que tudo aconteça na hora que queremos. Que tudo seja na nossa hora. Mas não é assim. Na maioria das vezes as coisas irão sair do nosso controle, e não vão surgir na hora que estaremos prontos, preparados. Oxalá, fosse assim! Quando cronometramos demais as coisas, tudo perde a espontaneidade, perde a adrenalina, perde a emoção da aventura, perde vida. Que isso não esteja acontecendo com nossos sentimentos, relacionamentos, amizades, paixões... Isso nunca teve hora marcada!
Por Dione Afonso, jornalismo PUC-Minas
Foto: “Museu de Paris – torre do relógio” – @valentinsimon / Pixabay
23/04/2020