29 Mar
29Mar

Entre Memórias Póstumas de Brás Cubas [1881] e Dom Casmurro [1899], nasce o romance machadiano Quincas Borba em 1891. Romance da fase do Realismo de Machado de Assis, a história é narrada em terceira pessoa e conta a famigerada saga de Rubião. Um herdeiro de uma grande fortuna de Quincas Borba. No entanto, o ethos urbano e a pouca relação que o distancia de sua convivência social o leva a ruína e a uma vida cética e sem alegrias. Encantado com o que essa grana toda pode lhe ofertar, Rubião se encanta com o deslumbrante futuro de sucessos e status que o calçadão carioca lhe pode ofertar.

O que nos impressiona é o fato de Machado de Assis tocar em assuntos sociais tão pesados e caros a nós, humanos, de forma humorística elevando o sarcasmo ao nível do sagaz. Sagacidade aqui não só na fineza de espírito e na manha dos acontecimentos, mas no simples indício de que a vida humana pode se perder numa fração de segundo ou numa eternidade de tempo: ambos marcados pelo espaço-tempo entre o buraco de uma agulha e a linha. Um homem do século I havia nos dito que um camelo pode passar pelo buraco da agulha mais facilmente do que um rico ter uma eternidade gloriosa e sem sofrimentos.

De repente nós podemos acordar numa manhã qualquer e nos deparar com um Disney que perdeu seus encantos e sua magia. Com uma Paris desacreditada no amor, com uma Roma fora do mapa e nós, ficarmos totalmente perdidos, já que nem todos os caminhos nos levam ao centro da cultura mais foda do mundo. Nova York passa a querer dormir, e, dormir até mesmo durante o dia. As luzes de Las Vegas começam a se apagar e a Muralha da China já não cerca mais todo e qualquer tipo de ameaça. Pois é! Vivemos tempos de quarentena e não é pelo fato de uma doença contagiosa estar pairando sobre nós como chuva ácida. Mas quarentena pela porção, número, quantidade, etimologia vocabular. Quarentena de ações, méritos, segregações. Quarentena de vínculos, relações, orações. Quarentena de danças na chuva, cantorias no chuveiro, tapetes escorregadores nas escadas da casa. Quarentena...

Quantos de nós não tivemos o doce desejo de viver uma vida de Rubião? De sonhar com a famigerada riqueza enfadonha do tecido social escrupuloso da desigualdade humana? Sim! Vivemos também tempos de quarentena. Quarentena de quem conta com paredes de papelão e a marquise de um viaduto como teto. Quarentena de quem conta com a riqueza dos Rubiãos de hoje que sustentam as pequenas criaturas vendendo seus corpos enquanto Quincas Borba revira a lata de lixo do outro lado da avenida. Quarentena de quem esquece que o pequenino Borba também precisa comer. Quarentena de pequenos anjos que antes ganhavam o dinheiro no sinal, vendendo suas balinhas, e hoje? Onde será que eles estão?

De repente a quarentena me fez conviver com quem eu menos convivo. De repente eu descubro que a cor das paredes de minha casa mudou e eu nem faço ideia de quando isso foi. De repente eu descubro que tenho uma filha vegetariana, descubro que meu filho cresceu e tem desejos de homem. Descubro que minha esposa, ou, que meu marido começa a revelar cabelos brancos. E, o mais assustador, foi preciso uma quarentena para que eu me despertasse para o que é mais essencial e que todos os dias estavam pertos de mim. Mas a quarentena do mundo lá fora só me colocava diante de uma coisa: do ativismo comercial. Da rotina de Rubião.

A quarentena não construiu esses muros. Não! Ela é o reboco deles. É como a argamassa ou o cimento que dá a textura lisa, fina, bem montada, perfeita, e até pintada com cores celestiais para ficar com uma aparência mais bela e agradável. Talvez pra se esquecer dos grupos em quarentena do outro lado. E assim, Rubião perde sua fortuna, e termina sentado à beira da calçada, debaixo da chuva gélida e sem casaco, ao lado, simplesmente de seu pequeno Quincas Borba, o cão.

Preso pela loucura, e por acreditar no Império e no poder do dinheiro, Rubião entrega-se à insanidade. Encontra nela sossego e paz. Ainda a alimentar o sonho de que sua riqueza o salvaria, morre à beira da calçada, sem abrigo e na companhia do cão de seu melhor amigo. O único pedido do amigo era que ele cuidasse do cãozinho. Mas, Rubião preferiu construir e confirmar-se numa quarentena onde só havia espaço para ele e seus sonhos imperiais. Ali, cachorros não caberiam. E parece que amigos também não. Só ele e seus sonhos, seus amores. No fim, foi traído pelos próprios sonhos e iludidos pelos amores.

Mas o único amigo, não o abandonou, até o fim Quincas Borba ali estava presente.



Por Dione Afonso, jornalismo PUC-Minas

Foto: @chargesdoniniu / Instagram / Divulgação

26/03/2020

Comentários
* O e-mail não será publicado no site.