29 Mar
29Mar

Caminhões de areia, barulho de serra elétrica, pregos, martelos, tijolos. Parece que a pandemia está oferecendo oportunidades para o povo reformar suas casas. Aquela varanda que há anos não é concluída, ainda no piso grosso, telhado improvisado, já que a correria do dia a dia e o trabalho exaustivo nunca davam uma brecha. E aquela escada para o terraço sem corrimão? Já estava na hora de providenciar a proteção, uma vez que tem crianças em casa.É hora de reformar. Colocar as coisas no lugar. O portão eletrônico da garagem há meses que está no manual. 

É hora de reformar. Terminar aquele puxadinho improvisado para melhor acolher o irmãozinho que chegou no início do ano. Lojas de materiais de construção começaram a facilitar as entregas da matéria-prima para que os clientes consigam pôr no lugar as coisas desorganizadas.

Pandemia é momento de reformas. Mais reformas e menos cuidado com a saúde, a reforma pioneira e mais urgente. É hora de reformar, mas, reformar a casa de carne e ossos. Essa anda trincada há mais tempos que a de tijolos. As rachaduras no corpo vêm, com o passar dos dias, se aprofundando cada vez mais. Quando chega o inverno, elas parecem ferir a carne viva, causando uma dor alucinante. É hora de reformar, curar essa cicatriz que um dia foi aberta por causa de um tijolo mal colocado, aquela resposta certa proferida no momento errado. Ou aquele silêncio quando era hora de falar.

É horar de reformar. O telhado velho já não segura mais as tempestades. As goteiras entram na casa ainda com mais insistência. Precisa-se trocar a madeira, as telhas não suportam mais o vento forte. Reinventar as relações é sempre necessário. Quantas vezes ouve-se por aí que é preciso cuidar para que “o casamento não entre na rotina”. E eu sempre me perguntei como que seria isso! O que é um “casamento na rotina”? E as respostas são cada vez mais ousadas: reinventar no sexo, comprar roupas novas, ter aquela noite romântica de vez em quando...

É hora de reformar... mas, reformar não é simplesmente tapar a rachadura com argamassa. É preciso buscar o motivo pelo qual a cicatriz se abriu. Noites mais românticas? Isso sim deveria ser rotina. Fazer sexo sempre de forma inovadora? Isso sim deveria ser rotina. Ter roupas novas? Desde que isso não alimente a ganância de sempre ter mais e nem o acúmulo de bens, isso sim deveria ser rotina. Ser feliz, deveria ser sempre rotina. Bons relacionamentos em família, pais e filhos, marido e mulher, mães, casa, família, uma reforma urgente que precisa de um projeto ousado e inovador.

É impressionante como que as pessoas colocam em segundo plano os projetos de reformas que deveriam ser a preocupação primeira. Um casal recém-casado preocupa-se com a sua sala nova que ainda não tem um sofá, mas se esquece de se preocupar com as relações cotidianas que deveriam ser mais presentes em diálogos saudáveis e não aqueles comentários de cobranças exaustivas e até desprezíveis, fazendo o parceiro ou a parceira sentirem-se inúteis.

Numa relação, seja de qualquer natureza, é muito comum um dos lados sentir-se diminuído para que o outro se sobressaia. Isso não é nem natural, nem normal. E não é uma reforma que irá corrigir essa obra. Ela precisa ser demolida e começar novamente. No alicerce, as quatro bases para sustentar os pilares deverão estar na mesma altura e profundidade: confiança, amizade, disponibilidade, auto autoestima deverão estar em sintonia para que quando concluir a obra, uma torre não esteja mais deslumbrante que a outra.

É hora de reformar. Repensar as relações. Quantos círculos de amizades se afastaram nesse período... Quantos amigos, colegas de faculdade, coleguinhas de escola, amigos da igreja, e daquele lanche na praça próximo de casa deixaram de acontecer. Eles também precisam iniciar as suas reformas. É hora de reformar. Reinventar-se, repensar, consertar, cicatrizar...

Pandemia pode ser também tempo de reformar. Reformar a vida. Reformas as relações. Reorganizar a rotina. Colocar no lugar o que não estava nos trilhos. Voltar para o ponto inicial antes de deixar a correria do dia engolir nosso tempo. Reformar é sempre preciso e nunca é um começar do zero. Trata-se de recomeçar. Voltar de onde parou e recomeçar. As rachaduras de sua casa são como cicatrizes no corpo. A argamassa corrige, mas não tira ela, apenas a cobre.

É hora de reformar, não voltar ao que era antes. O que era antes correspondeu àquele momento, mas os dias passam, o mercado, a cultura, a arte, as relações, se alteram constantemente. Voltar ao normal é perigoso, pois o normal pode não ser o que precisamos hoje. Precisamos voltar ao essencial que há muito tempo não temos.

Nas ruas, quando saímos para fazer o necessário e voltar para nossas casas, vemos rostos comuns igual aos nossos. Mesmo que uns estejam mais floridos, outros mais sérios, alguns nas cores oficiais, com a máscara branca... Mas, iguais... Pergunto-me: a máscara importa mais como item de moda ou continua sendo para proteção para sua saúde e a de quem se aproxima?

A cada dia que passa, a fala de Guimarães Rosa continua ainda mais pertinente: “Infelicidade é questão de prefixo. E viver é um rasgar-se e remendar-se” (Tutameia, 1967)

É hora de reformar.



Por Dione Afonso, jornalismo PUC-Minas

Foto: “Ruínas urbanas” / Foto de  @ArtCoreStudios / via Pixabay.

11/06/2020

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