29 Mar
29Mar

O grande poeta brasileiro Vinícius de Moraes, carioca, nasceu em 1913 sob o céu azul do Rio de Janeiro. Por muitos anos de sua carreira de escritor e músico, Vinícius soube embalar os corações brasileiros com os mais belos versos de sua poesia.

Em 1980, Vinícius compôs uma música falando de uma casa atípica dos padrões que conhecemos habitualmente. Nas nossas infâncias e brincadeiras de roda era comum entoarmos “era uma casa muito engraçada, não tinha teto, não tinha nada”. E lembrarmos da voz de Toquinho, quem deu voz à poesia do carioca. De fato, Vinícius teve uma inspiração concreta para a letra de sua poesia: a casa tal qual ele a descreve. É a Casapueblo, e fica no Uruguai. A obra começou a ser construída pelo artista Carlos Vilaró em 1958. A casa parece ter sido erguida ladrilho por ladrilho.

Uma estrutura magnífica. Imponente com sua cor branca estonteante, capaz de nos cegar até. Mas, magnífica. De fato, a canção dos anos 80 toca a nossa alma com a sua delicadeza e simplicidade de um ambiente que diz muito sobre nós.

A casa é quase que um elemento genético de nossa formação humana e social. Ela media as nossas relações e guarda até aqueles sentimentos que não gostaríamos de revelar a ninguém. Há aqueles que são capazes de descrever nosso DNA só de olhar para a casa que moramos. Isso é um perigo! Muitos lares sofreram drásticas modificações. Somos semelhantes àqueles heróis de 1963 criados pelo lendário Stan Lee e sua dupla Jack Kirby. Os X-Men. Sim, mutantes. Hoje, se formos analisados por nossas casas, descobrirão que nossos genes estão alterados por mutação. Alguns irromperam as fronteiras da genético-ciência e criaram sérias mutações no organismo social e interno.

Com o passar dos anos a casa foi perdendo seus alpendres e ganhando placas de vidro, transformando a área de lazer num cubo fechado. A vista continua à nossa frente. No entanto, o ar já não é mais o mesmo: foi aprisionado e condicionado a sair pelo comando de um controle remoto. As famosas trepadeiras, os muros verdes dos pinheiros são podados e dão lugar ao cimento e vigas de ferro. O canto dos pássaros torna-se mudo ao som do alarme que soa em toda a vizinhança anunciando o perigo. No lugar das flores, encontramos cercas elétricas. Tudo em nome da própria segurança, em nome de nossa proteção. Só não sabemos quem está protegido: quem está dentro da casa ou quem está do outro lado do muro.

Não existe síntese que mais me perturba do que a que diz que “tamanho não é documento”. O gênio que registrou tal pensamento em seus direitos autorais provavelmente vive entre esses muros. Não existe situação mais insuportável do que você ter que se relacionar com pessoas de mentes atrofiadas, consciências lesadas, sentimentos mesquinhos e ideias pequenas. Se você quer prova de que tamanho é, sim, documento, basta perceber que para quem tem a mente grande, qualquer casa lhe serve, desde a tapera da Amazônia latinoamericana, aquelas casinhas aconchegantes, cerceadas de tábuas de árvores, sem cômodos, sem móveis, somente o ar livre. Ao contrário, quem tem a mente pequena, não haverá mansão já projetada que será capaz de dar conforto a tal ser. Tamanha é sua consciência que será perturbador conviver na solidão e na ignorância de mentes pequenas e incrédulas.

Tamanho é documento sim! Quando a gente projeta uma casa, sobretudo, quando é a nossa casa, queremos colocar os nossos gostos nela. Quando a pergunta é sobre o tamanho, geralmente a gente diz que queremos um lar que nos caiba. E, se formos de grandes mentes, cabeças abertas, consciências formadas e que se alegram com os relacionamentos cotidianos, o simples desejo de uma varanda com bancos rústicos nos faz felizes.

Quão alívio é o momento que a gente destranca a porta de nossa casa e deita na nossa cama, após uma longa jornada, não é mesmo? Costumamos ainda dizer que, “foi muito bom, mas não é a mesma coisa”, não era a nossa casa. Semelhante às digitais de nossos dedos, nunca encontraremos outra casa igual à nossa. Nem mesmo os apartamentos padronizados de um condomínio. Cada “apê” terá sua peculiaridade. Seu DNA.

Hoje eu tive a graça de poder faxinar minha casa. Mais tempo dentro de casa nos ajuda a redescobrir quem, de fato, somos. Por que eu decidi morar onde moro? Pode existir uma explicação financeira por trás dessa resposta, mas, essa nunca responderá o porquê, de fato, que eu estou morando nesse endereço. Com a rotina de trabalho, a faculdade, os compromissos sociais, vamos aos poucos nos desligando de nosso lar. Aí, a casa passa a perder nosso gene e começa a ganhar o toque delicado ou não da empregada. O perfume da faxineira. O estilo estético da diarista. O mesmo pode acontecer com nossos filhos. Eles perdem o DNA dos pais na medida em que não os vê com frequência. E, assim também sofrem mutações: ganham a personalidade da babá. O estilo de andar, de se vestir, de falar da cuidadora. O jeito de pensar da professora da creche. E aí, vamos sendo mutantes. Seres especiais, estranhos na própria casa.

Quando, depois de anos, tive que faxinar minha casa, eu me surpreendi com o quanto ela é linda. Fiz as pazes com o esfregão. Cumprimentei a vassoura. Troquei altas ideias com o balde de água e até nasceu um colóquio com a cera de chão. Eu precisava de muito pouco para me reconectar à minha casa. E, daí reconhecer o tanto que eu tinha deixado para trás em nome de uma rotina exaustiva e sem vida. Agora, resta-nos recuperar o nosso DNA. Não queremos nos tornar como Wolverines por aí desafiando a todos com nossas farpas do estresse e do cansaço e nem como Cyclopes com olhares invejosos e de ganância com aqueles que conseguem vencer seus obstáculos na vida.

Tamanho é documento sim! Não medido por nossos superpoderes, mas pesado pelo nosso poder de amar, cuidar e de nos relacionarmos com carinho e atenção com todos que batem em nossa porta. Agora, é hora de terminar a faxina de nossa casa e poder desfrutar de uma boa xícara de café sentados na varanda, admirando a nossa rua, “a rua dos bobos, número zero”.



Por Dione Afonso, jornalismo PUC-Minas

Foto: “Uma casinha qualquer...” – @Suanpa / Pixabay

30/04/2020

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