Há mais de 80 anos nascia no Brasil as primeiras Estações Rodoviárias do país. Encontramos dois relatos desse ato pioneiro: em Marília-SP [1938] e em Vacaria-RS [1939]. A ideia inicial tinha a ver com o conforto e proteção dos passageiros que iam e vinham. Antes da primeira estação de Vacaria ser projetada, os viajantes usavam os hotéis como pontos de espera, embarque e desembarque.
No entanto, ao perceber que a ideia tinha dado certo, não demorou muito e outras cidades brasileiras também tomaram a iniciativa de construir as suas estações. A próxima foi Belo Horizonte, em 1941. Depois vieram Rio de Janeiro [1945]; Porto Alegre [1954]; Niterói [1955]; Curitiba [1958]; São Paulo [1961] e Salvador [1962]. Lugar curioso é o Terminal Rodoviário. Ônibus e passageiros, carregadores e malas, crianças e relógios, passos para lá, filas para cá. Humanos e pombos, guardas e mochileiros. Cheiro de café daqui e de pão de queijo de lá... Tudo se mistura. Tudo se consome...
Mais curioso ainda é quando começamos a imaginar o destino que cada pessoa deste lugar está prestes a seguir. Às vezes o simples semblante humano pode definir. Ao olhar para um casal, namorados, felizes, podemos supor que estão indo a um passeio extraordinário. Serem turistas em solo desconhecido. Ou ir se encontrar com aquele cantor ou banda que há tantos anos sonharam em ver de perto o ídolo de suas vidas. Ou, quando vemos um jovem de mochila nas costas, pouca bagagem, talvez seja um universitário indo no interior rever a família, ou, simplesmente alguém que fará uma viagem mais curta, sem a necessidade de muita bagagem. Não importa o destino dos seus sonhos, o importante é ter a coragem de embarcar. É doído, por exemplo, quando você se depara com um casal já de vida matrimonial gasta, sofrida pelo sol quente, com enormes bagagens, grandes sacos de linho, semblante triste. Ela com o melhor vestido, ele com a melhor blusa, se ajeitam para embarcar. Estes deixam na plataforma dias que querem esquecer e, na poltrona, desejam encontrar um novo destino para o que resta de suas vidas. Assumir o caminho de volta é tão difícil e desafiador quanto assumir um caminho novo.
Sentar-se num banco de espera da rodoviária algumas horas antes de sua plataforma liberar acesso ao embarque pode ser uma experiência única. Da antropologia à gastronomia, os gostos e os rostos se encontram. Sonhos e sabores são servidos na mesma xícara. É onde adormecem os destinos de nossas vidas. Onde cochila a oportunidade de nosso sucesso. E onde se perde a hora do grande amor. Onde temos os embarques que são necessários e aqueles que são simplesmente um desperdício de tempo. Em nome de uma famigerada fome de se deslocar, sobe em plataformas erradas e desce em estações que só trazem desilusões e mentiras.
Se tem uma coisa que me faz vibrar, algo que me faz pular de felicidade é quando algum amigo assume a firme decisão de embarcar numa dessas plataformas com destino ao seu sucesso ou em busca de seus sonhos. Pessoas que acreditam em seu potencial. Às vezes nem acreditam, mas se jogam com tudo, decididos a pelo menos tentar. Nada me alegra mais que o sucesso do outro. Eu não me canso de assistir o longa que o diretor Steve Antin fez de Burlesque. Não é o melhor musical que já vi. Em temário de sons burlescos, há melhores. No entanto, não é qualquer musical que me ganha respeito. Burlesque é um musical de 2010 inspirado no ambiente de Chicago nas tramas e fascínios dos Cabarés. “Ali” de Alice, é a jovem protagonista interpretada pela cantora e compositora norte-americana Christina Aguilera. Residente em Iwoa, trabalhava numa dessas paradas de beira de estrada como garçonete. Desde jovem, Ali tinha plena consciência de seu potencial. Ela só precisava embarcar.
Ali então, embarca numa viagem de uns 2.270 km mais ou menos, com destino a Los Angeles. O que ela ia fazer lá? Ela não sabia. Quantas vezes embarcamos sem ter clareza do nosso destino? E porque vamos? Vamos porque sabemos que a vida é uma só e oportunidades têm prazos de validade. Embarcamos porque nunca haverá a hora certa de fazer o extraordinário. Pois o ordinário é para pessoas comuns. E nós não somos comuns. Temos um destino. Temos sonhos. Em algum lugar, uma plataforma de embarque aguarda por nós. Não com “destino à felicidade” como cantam por aí. Felicidade nada tem a ver com destino, mas com autoestima, confiança, conhecimento. Felicidade não é o destino, mas o embarque. Felicidade é outro nome para plataforma, pois é ela quem definirá sua vida, sua viagem, sua companhia, até o número de sua poltrona. Felicidade é você próprio com tudo o que tem. Antes que alguém te aceite, é você quem deve se aceitar com tudo o que é. Sendo muito ou não. Quem escolhe a plataforma é você.
Enfim, é em Los Angeles que Ali descobre Burlesque, uma casa de show com coreografias e músicas. Curioso é a forma que as viagens colocam alguns passageiros em nosso caminho. Antin também contou com a voz rústica de Cher, uma cantora estadunidense de performance perfeita. Uma mulher altruísta, rígida, opaca, sem movimentos gentis e com dificuldades de ouvir. Ao ser enfrentada por Ali, Tess (Cher) deixa florescer uma grande amizade. O mesmo acontece com Jack (Cam Gigandet), o barman. Uma espécie de “anjo da guarda” de Ali que mais tarde conquista o coração da jovenzinha fazendeira de Iwoa. Jack também um dia tomou a firme decisão de embarcar. Sair de Kentucky (EUA) também não foi fácil.
Nosso destino pode não estar claro. No entanto, quem o define somos nós. Os roteiristas de nossa história somos nós. O final dela quem escreve somos nós. O que irá acontecer em cada cena terá os atores e atrizes que nós permitirmos. Nessa viagem, não escolhemos os passageiros, mas escolhemos quem pode sentar-se do nosso lado até o destino final. Na plataforma de embarque tudo pode acontecer. Iniciamos essa conversa sobre as rodoviárias. Elas têm a ver com viagens, destinos, sonhos e decisões corajosas de nossa parte. Quando foram projetadas, elas tinham um propósito: dar-nos segurança num dos momentos cruciais de nossas vidas. A viagem!
Para quantos destinos um embarque rodoviário pode nos levar, não é mesmo? Mas, para onde mesmo, você quer ir? Qual é o embarque dos seus sonhos? Atenção senhores passageiros, faltam 10 minutos para a última chamada de sua viagem. É hora de embarcar. Está pronto? E, por favor, não deixe de colocar os cintos. Algumas turbulências serão inevitáveis.
Por Dione Afonso, jornalismo PUC-Minas
Foto: “Passageiros” – Free-Photos / Pixabay
16/04/2020