29 Mar
29Mar

“Cidade branca”. A primeira vez que ouvi essa expressão foi quando assisti ao filme “Terra Estrangeira” do cineasta brasileiro, Walter Salles. Lançado em 1995, o longa narra a história de Paco. Um jovem de 21 anos que consegue sair do Brasil rumo à Europa com o desejo de conhecer a terra natal de sua avó: San Sebastián, na Espanha. A avó Manuela foi interpretada pelo ícone inigualável Laura Cardoso. Ela sonhava em um dia, retornar a ver sua terra. No entanto, indignada pelo “Plano Collor” do Governo que decidiu tirar todo o dinheiro do povo, Manuela sofre um infarto levando-a a óbito.

San Sebastián, como foi dito no filme é a Cidade Branca. Onde o branco do céu se mistura ao branco no mar, e tudo vira uma coisa só. Perfeita harmonia. Tela de pintura. Lindo de se admirar pelas fotografias. Sonho de qualquer pessoa em poder pisar em terra tão bela. Isso parece poesia, não é mesmo? Mas, dependendo do seu ponto de vista, ela pode ser o que você quiser, até seu lar, se assim desejar.

Diante do que estamos vivendo nas últimas semanas, Terra Estrangeira, o filme, cai-nos como uma luva: terra estrangeira nos faz ser estrangeiros na nossa própria terra. Sermos estrangeiros em nossa própria casa. Estrangeiros em nosso próprio corpo. Até mesmo a cor da pele nos faz estar fora de nossa terra, fora de nós. A cor da pele parece definir quem pode ter casa e quem deve morar sob as marquises da cidade branca. A cor da pele define quem deve morrer e quem deve prosperar a dita humanidade. Terra Estrangeira é também questão de identidade. Quem não tem lugar, perde-se em qualquer lugar que estiver.

Sensação condoída é essa que nos faz estranhos entre os conhecidos. Faz-nos desconhecidos misturados com os do nosso sobrenome. Terra Estrangeira é questão de identidade. Quem não tem nome, torna-se anômalo com qualquer sobrenome que carregar. Qualquer casamento que sustentar não o fará pertencente de uma família. Pois é estrangeiro dos próprios sentimentos, dos sacramentos, dos desejos, do sexo, do destino e dos afetos. Estrangeiro, quer dizer estranho, fora, desconhecido, não pertencente, forasteiro.

Ah, San Sebastián, até eu fiquei com vontade de um dia poder vislumbrar toda essa sua cor esbranquiçada sobre os raios do sol e o cintilar das águas do mar. E descobrir o porquê da “cidade branca”. Mas, por enquanto, eu pretendo dar à cidade branca em que vivo um pouco de colorido. Um pouco do vermelho do amor para apagar o vermelho do sangue; um pouco do azul da fraternidade, para apagar o azul frio do asfalto; um pouco do rosa da alegria, para apagar o rosa dos narcóticos que ingerimos; um pouco do preto da seriedade, para apagar o preto da morte, e, ir colorindo nossas ruas. É isso que precisamos para reconhecer que somos todos humanos. Reconhecer que toda vida importa. Reconhecer que o coração que todos carregam entre os ossos da costela é igual, bate igual, bombeia sangues iguais. O tipo sanguíneo é apenas uma questão de identidade, personalidade, assim, como a digital dos seus dedos, apenas uma certificação sócio-humana. Toda vida importa, não só a negra, a branca, a indígena, a ribeirinha, a mulata, a morena, a ruiva, toda vida importa. Toda alma importa, seja homem, seja mulher, seja ser humano, seja o que você quiser. Toda alma importa.

Se não for assim, independente do lugar, sempre serás um estrangeiro. Nem mesmo o sotaque definirá de onde és. Serás estrangeiro na terra natal. E não serás ninguém, apenas um estranho. Preocupar com o ser dá trabalho, mas é libertador, salvador, até. É por isso que se preocupa muito mais com o ter, pois esse não depende dos esforços essenciais de sobrevivência: depende apenas do sucesso, do status, da lábia e do desejo luxurioso e ganancioso. Ter é mais fácil que ser. Ser é mais humano que ter. Ter é sobre vencer. Ser é sobre competir. Ter é sobre poder. Ser é sobre querer. Ter é sobre permitir. Ser é sobre resistir. Ter é sobre ganhar. Ser é sobre doar. Ter é sobre sobreviver. Ser é sobre viver. Nas cidades brancas de outrora, as calçadas estão se tingindo de sangue vermelho escuro, marcando onde o ter assassinou o ser. E, enquanto isso vamos nos tornando estrangeiros no próprio endereço, porque o ter decidiu que o ser deveria morrer.



Por Dione Afonso, jornalismo PUC-Minas

Foto: Vila Santorini na Grécia / Foto de  Michelle Maria / via Pixabay.

04/06/2020

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