29 Mar
29Mar

A empresa é grande, a chuva cai lá fora, e canta nos estilhaços de vidro. O tom cinza e bruxuleante do asfalto é lavado de suas imundícies manchadas pela falta de respeito, falta de afeto, de teto, de comida, dinheiro, oportunidade, humanidade, fraternidade, compaixão. Chove na cidade hoje. Para alguns isso é sinônimo de romantismos, motivo para a sedução. Para outros, isso vira preocupação, motivo para xingamentos de baixo calão e correria para se esconder do calafrio estridente das nuvens torrenciais. Mas, para outros ainda, isso não passa de mais um dia em que os papelões irão molhar e se desfazer e, com isso, a solução será correr pelas ruas em busca de um abrigo improvisado até que a chuva passe. E, então, quando toda a tormenta cessar, ir à procura de um papelão novinho. Seco e, quem sabe, quentinho.

Alguns dançam na chuva, outros correm por ela. Alguns brincam, outros se beijam. Alguns choram afim das lágrimas serem disfarçadas pelas gotas das nuvens que caem. Enquanto isso, chove. Chuvas torrenciais, gélidas, que vão descendo sobre os arranha-céus antes de terem contato direto com o asfalto. Ainda assim, existem aquelas que batem sobre o telhado inundando as calhas e desaguando nos jardins do quintal da casa. Chove na cidade hoje. Banha a empresa de sucesso e aclamada pelo mercado interno. Do alpendre da janela, só vislumbro o horizonte distante banhado pelo mar vertical.

Em 1952, o cineasta Stanley Donen juntamente com o ator e cantor e, porque não, dançarino Gene Kelly, lançam Cantando na chuva pelos estúdios da MGMUm musical ao som da inesquecível “singin’in the rain”. O longa nos presenteia com uma das mais cenas clássicas da história do cinema. A cena de Gene cantando e dançando sob gotas de chuva é uma verdadeira obra de arte. O clássico norte-americano a lá estilo “cinema hollywoodiano” traz o casal Don e Lina (Gene Kelly e Jean Hagen) protagonizando a história. Cinema, não pelo cinema, mas pela fama, pelos atores renomados. Tudo, em prol de sucesso e bilheteria. Em nome da empresa e de seus lucros.

Um jeito de fazer cinema que agradou e ainda agrada o público até hoje. No entanto, a arte de filmar, e contar histórias pelas telonas vai muito além de um rosto bonito e de uma música de sucesso. Ela é mais real do que parece. Aos poucos, com o desenrolar das décadas, vamos percebendo que não se pode medir o sucesso da empresa pelo rosto bonito ou pela voz estonteante. Uma empresa de sucesso ganha destaque quando a vida de faz-de-conta começa a ceder espaço para aquela real, fotografada nos bancos das praças em madrugadas frias e solitárias.

É incrível, no mínimo curioso, o fato de como que uma cena, ou um closed imenso com seus mais de 2000 pares de sapatos, uma sala de cinema, uma série na Netflix nos faz viajar. Empolga-nos e nos ludibria a ponto de nos fazer esquecer do mundo por dois minutos e nos transportar para uma cena somente nossa do jeito que queremos e nos faz ser feliz por um pequeno instante. Chove na cidade, e chove também nos nossos sonhos. E ainda chove sobre os bancos da praça, as ruas da cidade, os papelões que se fazem de casas. Quantos não tentaram recriar, produziram seus remakes da famosa cena da “dança na chuva”? Quantos tiveram sucesso e quantos outros preferem revisitar o clássico da década de 50? Quantos hoje vivem na chuva buscando um motivo para dançar e cantar sobre ela?

Todos estão em busca de um guarda-chuva. Todos estão sobre o mesmo céu. Todos refletem a mesma chuva. Não bebem a mesma água. Todos estão no mesmo barco. Mas, não. Não estamos no mesmo barco. E a trilha sonora de cada tempestade também se difere. Podemos estar no mesmo mar. Enfrentarmos o mesmo dilúvio, até mesmo sermos selecionados para a Arca de Noé. Um casal de cada espécie, não é assim que nos conta a Bíblia? Mas, até essa história é fictícia, ou você é dos que acredita que a Arca realmente salvou a humanidade? E, provavelmente estaremos fadados a repetir o mesmo erro hoje, novamente. Queremos selecionar quem se salvará na Arca e quem será engolido pelo Dilúvio.

Não estamos no mesmo barco. Estamos no mesmo mar. E nele há transatlânticos, navios, submarinos, barcos, canoas, rabetas, uns elétricos, outros a remo, alguns outros furados com risco de naufragar. Alguns sonham com o Pérola Negra do Capitão Jack Sparrow, ou com o Jolly Roger do Capitão Gancho. E nesse Titanic injusto, desumano, cruel, frio, deixaremos morrer uns para salvar outros. No mar da pandemia é assim: enquanto uns lutam para sobreviver, outros estão salvos na Arca. Para o grupo foram selecionados os melhores! Pois a música não pode parar. O Titanic está afundando, mas o maestro insiste em tocar mais uma música, não é mesmo? A empresa não pode parar. A bolsa de valores não pode perder investimento. O dólar não pode cair. Esses estão na Arca. São os melhores. Têm mais dinheiro, mais reputação, um sobrenome importante, ricos e que representam “um futuro da humanidade mais seguro”. Enquanto outros, estão trancados em seus submarinos, submersos, separados dos humanos que morrem, assistindo tudo de longe, como Pilatos, “lavam as mãos” pois não são responsáveis pelo pecado humano. Não me assusta se esses também tiverem acesso vip na Arca.Não estamos no mesmo barco. Olhe para o lado, talvez seu navio esteja provocando ondas fortes demais e virando a canoa de quem tem o mesmo direito de sobreviver que você. No mar da pandemia, todos deveriam lutar juntos, seguir a mesma onda, mas uns insistem em navegar contra a corrente, desafiando a correnteza da ambição, luxúria e do capitalismo assassino. Cuidado, pois as ondas que seu Titanic provoca, ou, como diz o povo do Norte, os banzeiros de sua navegação podem estar afundando muita gente. E esse sangue, sem dúvidas, corre em suas mãos. Se bem me recordo, Noé construiu a arca com a esperança de salvar a humanidade do pecado. Não sei se deu certo, talvez, a seleção não prosperou conforme devia. Olhe para o lado e veja quantos barcos menores você já não virou e se pergunte: eu e você, estamos mesmo, no mesmo barco? Será que somos dignos da Arca?

“I’m singin’ in the rain. / Just singin’ in the rain. / What a glorious feeling / I’m happy again” (G.K.).  




Por Dione Afonso, jornalismo PUC-Minas

Foto: Paris – “vista para o mar” / Foto de Arek Socha /  via Pixabay.

18/06/2020

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