29 Mar
29Mar

Na tela do celular, o cronômetro digital marca 15h30, é hora daquele vespertino despertar de uma tarde de leitura e de estudos. Nada melhor que uma boa dose de cafeína sem nenhuma sacarose disposta a banir o amargo sabor do fruto das montanhas mineiras. Após o café, hora de correr. Caminhar, respirar outros ares, mesmo que esses estejam encalacrados com os gases de carbono que soltam das descargas que, nesse tempo, deveriam estar resguardadas nas garagens e seus inquilinos, respeitando o isolamento social. Mas, a economia tem que girar a todo instante, e tempo parado é desperdício de dinheiro, e não podemos nos dar nesse luxo. Enquanto isso, o país bate a meta grandiosa de 90 mil vidas que encerraram sua rotina nessa terra e se mudaram em definitivo numa distância de sete palmos abaixo da superfície.

Há egos que são massageados e egos que são feridos. Você já deve ter ouvido falar por aí de “é preciso massagear o ego de alguém” para que ele se sinta importante, sinta-se valorizado, ou simplesmente, tenha um mínimo de prestígio por algum feito por aí. E foi o que foi feito. A cédula de 200 reais foi anunciada e o famigerado lobo-guará será sua representação. O que isso significa? Significa que mais uma espécie da fauna brasileira foi declarada como grupo de extinção porque a representatividade humana mais uma vez quis se sobrepor às outras espécies de vida na terra.

Sim. Um ego massageado. E, do outro lado, um ego ferido. As academias da cidade foram fechadas. Faixas de contenção cerraram suas portas impedindo que os idólatras da beleza corporal continuassem embalsamando uma epiderme plastificada e tonificada com químicas sobre-humanas para que a beleza exterior se mantivesse firme, durinha e perfeita. Tudo para que os olhos de outrem admirem e se desmanchem de tesão e prazer alheio.

Fecharam-se as portas dos centros de beleza estética. De cuidados com o corpo. De fortalecimento dos músculos e da resistência. Fecham-se as academias, mas as Academias continuam abertas, até mesmo por vias digitais. As Academias das letras, do conhecimento, da sabedoria, dos livros, da literatura, essa nunca foi cerrada, faixas de contenção nunca foram capazes de aprisionar o conhecimento. Essas Academias continuam de portas abertas para sua visita e seus exercícios diários.

O gás que passas a respirar limita-se àquele inalado pelas tintas fundidas sobre o papel, mesmo assim, quase nunca é perceptível. Pois o conhecimento não tem cheiro e nem sabor, ele limita-se ao tato e ao prazer incomensurável da tesão e gozo literários que uma leitura e o fascínio de uma história lida, vivida e experimentada.

É por isso que muitas resistências são encontradas na adesão de e-books e livros digitais. Acaba se tornando uma atração on line, um prazer à distância, sem tato e sem mistura de suores. No entanto, o gozo é garantido. Com as mãos apalpa-se o kindle, e sente o poder da tecnologia da conectividade, iguala-se quase à experiência da mesma corrida vespertina ao se encontrar com outros ares, cheiros e odores. Corrompidos, é claro, mas atraentes. É o prazer de se viver perigosamente.

Enquanto continuarmos a lamentar pelas academias fechadas e a impossibilidade de praticar os crossfit da vida, nunca olharemos com outros olhos para as Academias sempre abertas nas salas de nossas casas. Nelas exercícios exaustivos que desafiam nossas forças estão loucos para nos enfrentar. Você pode suar como nunca derramou suor na sua vida, perder peso como nunca perdeu, definir seus músculos como sempre sonhou.

E sabe qual é a diferença? A diferença está em que, quem deve enxergar a mudança é só você. O outro verá, se você permitir. A mudança externa é parte de um exercício interno. A verdadeira mudança parte de dentro para fora. Antes do abdômen definido, primeiro define-se o intestino, antes do peitoral sarado, primeiro, a gente sara o coração. Antes do rosto sem rugas, primeiro cicatrizamos o cérebro e curamos a memória. Só depois que o corpo definido, sarado e bonito é que se revelará a quem nós queremos que se revela. Essa é a Academia sempre aberta e disponível em nossa casa, em nossa sala, as vezes em nosso quarto.

Para terminar, eu gostaria de trazer mais uma vez um exercício de Lewis Carrol, exercitado em 1865 com o título de Alice in Wonderland. Nele, Carrol afirma que o “impossível não existe, basta a gente querer e fazer”. Antes do café da manhã, ao acordar, o exercício que ele propõe é acreditar em 6 coisas impossíveis:

1. “Existe uma poção que faz você encolher”: ou seja, eu me adapto em qualquer lugar, se eu não sei eu posso aprender ou pedir a quem sabe;

2. “E existe um bolo que faz você crescer”: cabe todo mundo nesse mundo. Tem espaço pra todos de todos os jeitos e gostos. Cada um pode sonhar o que quiser, nesse planeta, todos têm lugar;

3. “Animais sabem falar”: se eu não gostei, se me magoou, se me ofendeu ou ofendeu alguém eu estou no direito de falar que isso não é legal. O diálogo e um pedido de desculpas, salva inimizades e evita conflitos;

4. “Gatos podem desaparecer”: ninguém precisa me ver fazendo algo de bom. Boas ações são mais valorizadas no anonimato só pra quem realmente importa. Status, holofotes foram feitos apenas para vangloriar-se. A base da caridade é o amor, simplesmente;

5. “O País das Maravilhas existe”: o mundo é cheio de todo tipo de gente. Jovem e idoso, adulto e criança, hétero e LGBTQIA+, homem, mulher... O País das Maravilhas é esse em que qualquer um pode ser o que quiser, quem quiser, do tamanho do seu sonho, respeitando e amando as diferenças;

6. “Eu posso matar o Jaguadarte”: e eu sou mais um que veio pra fazer a diferença e topar qualquer parada porque eu sou maior que o desafio que me é dado. É importante que o mundo e as pessoas me desafiem, pois isso, ou me fará crescer, ou me ajudará a conhecer meu limite.  




Por Dione Afonso, jornalismo PUC-Minas

Foto: Levantamento de peso / Foto de Goran Horvat / via Pixabay.

30/07/2020

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