Muito bem nos ensinaram os livros de História naqueles nossos bons e divertidos tempos de escola. O dia mais feliz de nossas vidas era quando a van da prefeitura parava no portão da escola e dela saíam pilhas e mais pilhas de livros, branquinhos, novinhos, limpinhos. E o cheiro, gente? Nossa! Era o melhor aroma que a gente já podia sentir. Superava até mesmo aquele perfume leve e doce da garota da primeira fila que você não tirava o olho. Mais tarde se tornava sua primeira paquera, e, no caminho de volta pra casa, a responsável por lhe dar o primeiro beijo.
Foram os famosos Golden Times de nossas vidas.
Segundo os livros didáticos, naquele tempo começávamos a estudar História partindo da era dos dinossauros. Eles existiram mesmo? Será? Jurassic Park então foi real? Bom, entrávamos na nossa história, na história do homem deixando os dinossauros pra trás sem termos as respostas. Tudo virava fantasia! Então, éramos introduzidos num “era uma vez...” que começa quando o homem inventa a escrita. Um meio mais eficaz de comunicação. E aí vieram as eras históricas: a Era Antiga que se iniciou com a “invenção da escrita” e durou até a queda de Roma. Ao que parece, acho que Roma era o centro do mundo, da sabedoria, do conhecimento, da filosofia até, não só da religião. Depois deu-se início à Era Medieval, ou Idade Média, onde o centro das atenções saiu de Roma e foi pra Constantinopla; depois a Era Moderna que culmina com a Revolução Francesa e, por fim a Era Contemporânea: de França para o mundo! Isso era o que esboçava os nossos livros de história daquele tempo.
Hoje fala-se de uma Era Moderna e, que se divide em três fases: a Pré-Moderna, a Moderna e a Pós-Moderna. Parece confuso, não é? Pois a Era Moderna está lá trás. Bom, mas o conceito de Modernidade parece que resolveu retornar para os nossos livros e tornar-se o centro de nossas discussões. Hoje a própria modernidade se liquidificou, como o filósofo-sociólogo polonês Zygmunt Bauman [1925-2017] tem nos alertado. Falar de uma Modernidade Líquida é falar de uma sociedade que se derreteu. Uma sociedade que perdeu a solidez das relações, dos sentimentos, da fé, das crenças, do ensino, do conhecimento, e até mesmo do sentido de viver. Tudo se torna liquidez perante as construções sólidas que há tempos não nos respondem mais porque estamos nessa Terra.
Não tenho cabedais suficientes para destrinchar esse emaranhado de eras da tríade da modernidade. E, não é essa a nossa intenção. Apresentei estes termos para chegar num outro mais complicado ainda e, talvez, bizarro. Mas, temo termos alcançado a Era das Lives. Vivemos um tempo que até a comunicação tem se liquidificado, perdido a sua solidez e hoje se comunica a descomunicação. Hoje se curte o que depois eu possa “descurtir”. É o retrocesso do conhecimento e o retrocesso do desenvolvimento vital não só da vida, mas do próprio corpo do homem e da mulher.
A Era das Lives. Inaugurada em 2015. A famosa plataforma social chamada Facebook passa a ofertar para seus clientes sedentos de interesses alheios, a famosa live. Ou seja, a vida “ao vivo”, em cores e HD. Eu posso mostrar onde eu estou no exato momento em que estou. Quer saber o que eu faço? Como eu vivo? O que eu como? Como é o meu quarto? Não precisa mais vir à minha casa. Não precisa mais se pôr na rua. Não precisa mais tocar a minha campainha e me fazer descer pra atender a porta e te dar um abraço, olhar-te nos olhos, perguntar como você está. Basta acessar minha transmissão ao vivo que você vai saber de tudo isso. Assim ninguém perturba ninguém!
A Era das Lives. Uma Modernidade Pós-Moderna. Um conceito que já superou o de Contemporaneidade. Hoje nem sabemos mais o que é. Em 2010, vendo o sucesso das lives, criou-se a Rede Social Instagram. Seu objetivo inicial era até positivo. Uma plataforma própria para suas fotos e pequenos vídeos de até 30 segundos. É a vida captada num segundo de instante. Aquele momento único e rápido que vale para toda a vida. Mas, eles queriam mais. Então, oito anos depois a plataforma lança o IGTV: o Instagram TV. Agora você lota seus stories contando e mostrando ao vivo cada passo que você dá no seu dia a dia.
A Era das Lives. A perda da noção do privado. A mutação da vida pública com as situações emergenciais e pessoais. Em tempos de quarentena o número de lives tem crescido exorbitantemente. Poderíamos aproveitar este tempo para estar com a família, recuperar a mesa como centro de encontro. Voltar a dar boas risadas. Talvez seria o momento para consertar aquilo que não deu certo e recuperar a confiança daquele que divide parede com você.
A Era das Lives poderia se caracterizar pela era em que a humanidade deixa de sonhar com um futuro distante, lá, escondido no Reino de Oz com estradas de tijolinhos dourados e passar a viver as lives familiares, com os filhos, os idosos, aqueles com quem a vida toda vivemos e a vida toda ignoramos, não valorizamos, não enxergamos. Hoje o número de casamentos desfeitos é o maior nos últimos 35 anos. Caiu 1,6% os enlaces matrimoniais e cresceu mais de 3% os divórcios. Nós não suportamos o outro mais. A vida toda a jovem viveu em busca de um príncipe encantado, montado no unicórnio branco, de cabelos esvoaçantes e olhos claros. O par perfeito para completar a sua metade da laranja, ou para tampar a sua panela. Mas não dá certo, porque ninguém nasce pela metade, ninguém tem que completar ninguém e ninguém tem que ser perfeito pra ninguém. O mesmo acontece com o cara que espera salvar a pequena donzela da torre mais alta do castelo e matar o dragão, para, depois, ele se tornar o dragão do pesadelo na vida dela. O dragão da indiferença, da autoridade, do machismo, da masculinidade perfeita, forte, viril. Ele, não percebia que a torre mais alta do castelo era, não sua prisão, mas sua fortaleza! Era a sua intimidade, sua integridade, sua força, sua feminilidade.
A Era das Lives. Voltando aos livros de história, cada Era era inaugurada com a queda de algum Império, ou algum modelo de governo. A Era das Lives é inaugurada com a queda desse Castelo. O castelo da intimidade, da pessoalidade, da identidade, do privado. Destruiu-se o castelo e matou-se o dragão, ou pelo menos o reprimiu. Acabou com a fronteira do que é pessoal e tudo tornou-se público. Menos as relações, o abraço, o amor, a amizade, o olhar, o beijo, o carinho... E você tornou-se o dragão que destrói relações, famílias, casamentos, o dragão da autoridade, do “só eu nessa casa”, do “tudo eu”, do “eu quero me matar porque ninguém conversa mais comigo”... E, então, a Era das Lives constrói um novo modelo de governo: o líder é o dragão! Tomara não ser eu!
Por Dione Afonso, jornalismo PUC-Minas
Foto: “A Torre mais Alta” – Pexels / Pixabay
02/04/2020