A arquitetura moderna tem se deliciado em nos surpreender e desafiar a matemática e as leis da física. Torres, prédios suspensos, curvas arquitetônicas devem ter colocado os pedreiros em apuros. Vira e mexe me pego refletindo olhando a ousadia das antigas pirâmides construídas no Cairo, às margens do Nilo. Esplêndidas construções para aquela época. Quanto esforço escravo braçal não foi empenhado para arrastar blocos de pedra e erguer 140 metros de uma construção com um único propósito: enaltecer a riqueza do Faraó até mesmo na hora de sua morte. Essas pirâmides abrigavam os corpos de seus reis, tidos como divindades na terra. Até hoje a literatura, a mitologia, adequam para os livros e o cinema as mais fantasiosas histórias dos sarcófagos de Reis e Rainhas mumificados nessas pirâmides.
Hoje, as pirâmides do Egito compõem uma das Sete Maravilhas do Mundo. Contudo, os traços da arquitetura moderna têm se dedicado em construir arranha-céus dos mais suntuosos e luxuosos possíveis. As pirâmides “tocavam o sol”, elevando a alma do Faraó. Hoje, os prédios, todos revestidos de vidros e espelhos refletem a luz do sol, tentando usurpar tal poder. E os primeiros raios de sol batem nas varandas.
Portanto, o caminho dessa reflexão é um tanto curiosa. Refiro-me à arte dos desenhos arquitetônicos e da engenharia. Nunca imaginei algum arquiteto ficando famoso por projetar uma varanda que tivesse uma conexão com uma divindade...
Os mais requintados e amantes da astronomia instalam ali, um telescópio para estudar as estrelas. Os mais jovens a usam como depósito de roupas sujas e de objetos velhos. Os casais põem ordem nessa bagunça. Instalam um varal e lavam a roupa suja. Os recém-casados admiram as estrelas a olho nu, vivem ali, o segundo round de uma breve lua de mel – a varanda vira, num curto período de tempo, – palco de uma cena erótica e carnal somente para adultos. Mas, diante das estrelas... E elas... tudo assiste. Esses mesmos recém-casados, se conseguirem se reinventar nessa varanda, irão permanecer unidos pelo laço matrimonial, e pelo aconchego arquitetônico. Lar, doce lar. E, a varanda vai ganhar plantas e cadeiras de balanço, e, entre os arranha-céus, tentaremos admirar o pôr-do-sol sendo sugado pela poluição da arte urbana.
O Nascimento da Tragédia, publicado em 1872, é a primeira obra de Frederich Nietzsche [1844-1900], filósofo alemão crítico da cultura contemporânea e amante da arte e da estética. Nietzsche acreditava que somente a arte poderia oferecer aos homens força e capacidade para enfrentar as dores da vida. Ele dizia que “a arte existe para que a realidade não nos destrua” [1872]. Para os gregos antigos, a arte tinha um papel de “Redenção”. Por isso as pirâmides do Antigo Egito tinham esse caráter de elevar a alma até deus. De “tocar o sol”. Eles acreditavam que o Faraó seria salvo, se fosse guardado dentro de uma pirâmide, após sua morte.
Traduzindo para o hoje, ao olhar o horizonte embaçado pelas fumaças turvas da cidade grande, diante do caos, e dessa individualidade em que vivemos, esse é o momento do nascer de uma nova arte. Em suas prisões, vemos grandes nomes da arte moderna musical nascerem das varandas de seus condomínios. Vemos compositores compartilhando com os vizinhos do prédio – a maioria deles nem se conhecem – a nova arte nascida de um período caótico. Provavelmente acredita-se que o sol brilha mais na varanda do vizinho. Assim como eu falo que a grama do jardim do outro é mais verde. No entanto, para vencer a solidão, essa arte é compartilhada no público das mídias e canais digitais. E assim, alguns se destacam e quebram recordes de visualização.
A cantora norte-americana, Beyoncé, num show transmitido nesse formato live em 2018, se tornou o maior da história no número de acessos. Foi num show em Coachella Fest Musical, na Califórnia. Reunindo o maior número de público via online para assistir sua apresentação. Por quase 3 anos ninguém havia quebrado esse recorde. Até Gusttavo Lima, cantor sertanejo, realizar um show de 5 horas no mesmo formato, de sua casa. O cantor bateu o número de 720 mil visualizações. No entanto, a dupla sertaneja, Jorge e Mateus, na sua live-show de 04 de abril de 2020, assumem a liderança. Com 10 minutos de transmissão, a dupla atingiu o número de 1 milhão e meio de acessos. Agora, a dupla desbancou os dois artistas e assumiu o pódio. A live-show chegou a ter 3.1 milhões de contas conectadas. O dono da pirâmide mudou! Este número voltou a bater recordo na live-show de Marília Mendonça, 4 dias após a dupla. A sertaneja assume o topo dessa pirâmide com 3.2 milhões de acessos. Acho que as mulheres são quem dominam as varandas de suas casas.
Parece-nos que o conceito de varanda, mais uma vez mudou. A arte nos faz esquecer dos problemas sociais e admirar as estrelas. Ou nos conectar com o sol refletido na vidraça dos nossos prédios. E hoje, estamos aqui na varanda, talvez num encontro casual, sem nada pra fazer, ou com nosso parceiro ou parceira, pensando se teríamos coragem de fazer algo inusitado ali. Do conforto de nossas varandas, voltemos a olhar para o Sol. A se aquecer através de seu brilho. Talvez precisamos reinventar as nossas varandas...
E eu aqui, mais uma vez, volto a refletir sobre as Pirâmides do Antigo Egito. Diz a história que as esposas dos Faraós eram enterradas vivas junto do bem-amado. Pois para elas, aquele homem era um deus. Dava a elas a bênção do amor. Do ouro. Da Redenção. Elas acreditavam que também receberiam a bênção de “tocar o Sol”...
Por Dione Afonso, jornalismo PUC-Minas
Foto: “A janela francesa” – Free-Photos / Pixabay
09/04/2020