29 Mar
29Mar

Quem será o primeiro? 

Uma pergunta curiosa misturada ao desprezo e nojo do homem. Quem será o primeiro? Sim, quem será? Depois que a vida de mais de 200 mil acabou, agora outras 200 mil vidas estão sem poder respirar. Quem será o primeiro? Depois de esbravejar nossos gogós nos centros municipais gritando por direitos iguais para todos, para manter as vendas funcionando, fazer a roleta da fortuna girar enquanto outros nos hospitais só queriam que vocês parassem de brigar. Quem será o primeiro? Depois de insistir em não deixar o Natal e o Ano Novo passarem em branco sem ao menos acender uma vela, e os velhinhos de nossas gentes só queriam a segurança de poder viver mais alguns anos. Quem será o primeiro? 

Sim! 

Quem será o primeiro? Quem será o primeiro a chegar na praia vazia? Quem será o primeiro a estourar a garrafa de champagne na Virada? Quem será o primeiro a ser abraçado? Quem será o primeiro da fila no supermercado, farmácia, academia, salão de beleza... Quem?

Quem será o primeiro?

Será eu? Será você? Será nossa casa?

Na corrida pela vacinação, repórteres, cinegrafistas, emissoras de rádio e de TV, gerenciadores de Redes Sociais, políticos, médicos, e mais uns 200 mil olhares de curiosos só querem ser o primeiro: o primeiro a tomar a vacina; o primeiro a tirar a foto que será vendida nos principais jornais do país e do mundo; o primeiro a filmar a primeira dose aplicada no Brasil. 

Sim. 

Quem será esse primeiro que irá carregar sobre a fama da imunidade? E quantos outros primeiros serão os urubus da informação de primeira mão, os famosos “furos de reportagem”, os que chegam na frente para noticiar o grande feito no Brasil. Todos só querem saber de ser os primeiros em conquistar o prêmio tão desejado da carreira, da profissão, aquela promoção tão sonhada e que lutou tanto pra conseguir.

Com máquinas fotográficas em mãos, celulares ligados e antenados, microfones escondidos, tudo pronto! Tudo pronto para o grande registro do país que acreditam acontecer nos próximos dias. Enquanto isso, outros que não se importam em ser o primeiro, estão silenciosos enviando mensagens daqui e dali em busca de, pelo menos, uma doação de oxigênio para aqueles que estão sem poder respirar porque não foram os primeiros da fila. E, só queriam que nós fôssemos os primeiros a ajudar. Parece que a Venezuela foi a primeira, não é mesmo?

Enquanto ficamos desesperados em busca desse “ser o primeiro”, ninguém sequer se importou ou se preocupou com o primeiro contaminado. Era “uma gripezinha”, disse um primeiro que ganhou tutela e aprovação de uma pequena multidão. Ninguém se preocupou com o primeiro óbito registrado no país. Pessoas morrem todos os dias, não é mesmo. Mas uma cidade enterrar 200 caixões em menos de 24 horas não pareceu ser um ato pioneiro digno de atenção e de revolta, não é mesmo?! 

O primeiro teve que se contaminar pra virar notícia; o primeiro teve que morrer para produzir uma matéria; os primeiros tiveram que ficar sem oxigênio para construirmos uma reportagem. Isso não é estar a serviço da comunicação. É estar a serviço da morte, do genocídio, do desumano. Estar a serviço é impedir que essas notícias sejam realidade. Quem sabe você ou eu não sejamos os primeiros?




Por Dione Afonso | PUC Minas

Foto: O primeiro a morrer. Imagem de Reimund Bertrams via Pixabay. 

14 de janeiro de 2021. 

Comentários
* O e-mail não será publicado no site.