21 Jul
21Jul

O saber do mineiro é um saber calado. Comedido. “Come quieto”, como eles autodefinem. Nascer, crescer e viver em Minas Gerais é um grande privilégio, é estar em berço de ouro. Ouro Preto ou Branco, mas também ouro literário, teológico, gastronômico. A cultura mineira é recheada de sentidos e sentimentos entre suas linhas, entre-linhas e até mesmo por trás das linhas. Linhas do tear, da cultura artesanal da colcha que aquece em dias frios, linhas das marias-fumaça que já fizeram sucesso no nosso estado patrimonial brasileiro. 

Olhe para as canções mineiras; olhe para a poesia mineira; saboreie as frutas e a conduta de quem faz de sua terrinha, berço de simpatia. Acolhida. Hospitalidade e companhia. 

O trem como vagão de carga se transforma em objeto, afeto, concreto. Hoje ele é onomatopeia e num segundo depois vira comédia, humor, horror, susto e até mesmo sentimento de pudor. O trem perde sua originalidade e ganha o dicionário com seus significados, com a atualidade, modernidade, nova identidade, novidades, diversidades e ama a quem quiser, puder, e se impuser. Não importa de onde ele vem e em que trilhos ele vai se guiar. O trem sempre nos faz escapar. Nos tira de um lugar na mesma intensidade com que tira-nos de um diálogo embaraçoso, de um pedido de namoro, de uma seresta na janela, ou de um discurso acadêmico. É só evocar o trem de Minas que ele te resgata. 

O espírito calado, quieto, tímido e discreto do mineiro revela uma das antropologias mais caridosas e hospitaleiras. Há quem canta que “quanto menor a casinha, mais sincero o bom dia”. “Quanto menor a cidade, maior a simpatia”. De fato, a sabedoria do pequeno, do simples – mineiro ou não – é um saber que ultrapassa os limites da Academia, do letrado, do doutor, do jornalista, do condecorado, do professor, do mestre. Quem dera um dia se houver a condecoração de alguém pequeno, de um “trem” qualquer que se fez letrado em sabedoria popular, letrado em acolhida e cafezinho quente coado na hora na barra do fogão à lenha. Letrado no pão de queijo ou no machado a partir a lenha. Condecorado no acender o fogo no fogão à lenha e no assar uma broa de fubá sobre folhas de bananeira. A condecoração seria apelidada de “trem com medalha”, uma palavra grande demais pra se memorizar, mas, carinhosamente substituída por uma menor, mais acolhedora, divertida e fácil de guardar. Afinal, ninguém, sobretudo, nenhum mineiro, perderia o trem e nem deixaria trem nenhum para trás. 

De BH ao Vale do Aço o trem trilha por linhas governadas e devidamente projetadas. Mas de um canto ao outro, de qualquer lugar, ele se permite desgovernar, não perdendo o rumo e o sentido, mas ganhando novos significados, sentimentos e sorrisos. Cada trem com seu trem. Cada qual com sua invocação mesmo ao falar trem indicando ter se esquecido da palavra original, ou trem quando tá com raiva porque a receita não deu certo; trem ainda quando o estresse fala mais alto quando perde a hora. Trem pode ser de alegria quando uma piada foi dita; “eita trem” de assombro ou novidade; “oh trem” de dúvida; trem de indicação por um objeto próximo; trem quando grito por algo longe; trem em tom de pergunta, e gente perguntadeira é o mineiro; “que trem é esse uai?”; … e você pode continuar complementando os sentidos e sentimentos. O trem permite quase tudo. 

Só há uma flexão gramatical que o trem não aceita: o plural. “Seus trem”; “esses trem”; “nossos trem”… Por mais que o trem aceite se encaixar em qualquer lugar, expressão, situação, condição, movimento, ele é único, assim como a cultura que o gestou também é. Não aceitamos cópia, xerox, e nem muito menos imitação. Cada cultura tem a sua magia, suas leis, “seus trem”. E cada cultura é única e própria. Se o nosso trem se tornasse plural ele estaria invadindo uma classe à qual ele não pertence e faria mal para ambas as culturas. Iniciamos este texto falando da sabedoria dos pequenos e recordamos das condecorações dos grandes. Bom… cada um com “seus trem”, não é mesmo?! Eu, como jornalista, gosto de ficar do lado dos pequenos. De contar suas histórias, de ouvir “os trem” que eles têm pra contar. E sai cada trem… É magnífico e mágico quando paramos pra ouvir a história dos outros, sobretudo daqueles que geralmente a sociedade não se importa em parar pra ouvir. Bom, o jornalismo também tem “seus trem”, e cada um escolhe o vagão que quer embarcar. 

Há o escritor brasileiro, Millôr Fernandes (1923-2012) que formulou um pensamento que até hoje é lembrado: ”Jornalismo é oposição; o resto é armazém de secos e molhados”. Ele, não sendo mineiro, compreendeu em que trem ele se meteu… E George Orwell (1903-1950), importante figura do radiojornalismo, jornalista nascido na Índia Britânica, afirmou que “Jornalismo é publicar aquilo que alguém não quer que se publique. Todo o resto é publicidade”. Esse trem aí, sei não heim… Uai sô! Onde ele vai pará cumpade? 





Por Dione Afonso  |  PUC Minas

21.jul.2022

Foto: Reprodução / Nathalia Segato via unsplash.com

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