04 Feb
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É um pouco cômico, eu sei, a fala da Rainha Vermelha presente na literatura de 1977 de Lewis Carrol. Alice no País das Maravilhas não é a primeira vez que se torna referência em meus textos e em minhas crônicas. Em alguns, é pra exaltar mesmo uma comédia ou um gesto humano de reflexão, mas, dessa vez, a frase autoritária, assustadora e cruel daquela rainha eclodiu em minha cabeça mais como um bradar de indignação. 

Enquanto negros, jovens, pobres, mulheres, indígenas, ribeirinhos, estrangeiros, os sem teto continuarem sendo alvo dos que se acham donos do mundo, a sociedade nunca irá caminhar para uma melhoria em condições de vida igualitárias para todos, sobretudo para os que são chamados de minorias. Em poucos dias assistimos, à mortes de homens e mulheres, jovens, algumas crianças e outros idosos a sangue frio, abatidos como se estivessem nesse mundo apenas para satisfazer o desejo carnal e canibal de alguns. Você se assusta com o que lê? E faz o que com essa sua reação? Ou fica só assustado em sua casa, seu quarto, ou na sala diante da TV assistindo a essas demonstrações de barbárie? 

Sim. Moïse Kabagambe morreu. Foi morto em nome dessa crueldade desumana, ou para alimentar desejos estranhos que nunca entenderemos os reais motivos. Dinheiro? Soberania? Poder político? Inveja? Xenofobia? Preconceito? Ou, simplesmente por prazer em mostrar que é forte o suficiente para se tirar uma vida? “Cortem as cabeças!”. Sim! Cortem essas cabeças que não conseguem raciocinar e não compreendem o valor de cada vida humana e sua contribuição para a nossa comunidade. Cortem as cabeças desses que veem no dinheiro a única salvação, a ponto de não considerar remunerar todos aqueles que doam do próprio tempo afim de fazer seu negócio financeiro expandir. Seja um quiosque, ou seja uma startup. 

“Cortem as cabeças”, não pagando a violência com violência. Essa é uma dívida difícil de ser quitada. A humanidade já vem pagando por ela com juros altíssimos há milênios. Hoje, a família Kabagambe busca por justiça, por reconhecimento, por ajuda para sobreviver. E você? O que busca? Produzir uma crônica (sobretudo é o que estou fazendo agora), um textão pra facebook, postar artes incríveis no seu Instagram, levantar a tag #JusticeforMoise em todos os seus perfis sociais, pode até ser um caminho. Mas quando fica só nisso, é hipocrisia, desafeto, falta de empatia e até cumplicidade com quem agrediu. Quando se pode ir mais além, lutar mesmo, com unhas e dentes, por justiça, por paz, por políticas públicas a favor de uma gente, de um povo que tanto fez por seu, por nosso país, é preciso ir. Sair das Redes e construir uma rede de verdade, de mãos e coração, em busca de solução real para as doenças que a sociedade há tanto tempo busca sua cura. Cicatrizes que precisam ser cicatrizadas. 

Lamento muito pela família Kabagambe. E lamento também por nosso país que continua a assistir tudo isso, e fechar a tela de seus aparelhos celulares e partir para a próxima notícia, próxima morte, próxima vítima... Essas sim, são “cabeças que precisam ser cortadas”, afim de, no lugar delas, brotar uma nova com nova consciência e humanidade.




Por Dione Afonso  |  PUC Minas

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