06 Jul
06Jul

Quando construímos um contato com uma experiência musical, é notório que nossa relação com a “arte de ouvir” uma canção, melodia, apreciar uma letra ou viajar em notas musicais toca em algo muito íntimo de cada pessoa. A música tem um misterioso poder de fazer-nos “destrancar” certas portas que nunca temos coragem de revelar em nenhuma outra situação ou a nenhuma outra pessoa. É algo construído apenas entre a pessoa e a música. 

Há um bom tempo, a Filosofia e as Artes tem buscado formas de definir o que é a música: há quem diga que a música é “uma manifestação do fundo acústico do universo” (M. Serres); ou “uma aventura sobre o inefável” (V. Jankélévitch); “uma manifestação da Vontade ou da essência do mundo” (A. Schopenhauer); “uma manifestação exterior da dança do espírito” (F. Nietzsche e G. Steiner); “será a música um problema matemático da alma?” (G. W. Leibniz); “será a música uma simples sintonia emotiva, ou uma simples equivalência passional limitada às imitações das paixões, ou expressão da interioridade ressonante?” (G. W. F. Hegel). 

O que é a música? Que experiência essa Arte do Belo pode nos proporcionar? Conhecimento? Representação? Vontade?... Não vamos aqui nos alongar num debato longínquo a respeito das filosofias da estética para chegar a uma conclusão. O resumo acima já é o bastante. Queremos apresentar uma outra arte que tem contribuído numa experiência mais intensa e salvadora a respeito da música e da memória afetiva: a série de tv Stranger Things. 

Criada pelos gêmeos Matt e Ross Duffer, norte-americanos, a série, que terá um total de 5 temporadas é uma obra de ficção que envolve adolescentes moradores de Hawkins, em Indiana, EUA que, ao conhecer uma garota com poderes descobrem a existência do que chamam de um Mundo Invertido, uma Hawkins sombria. Com a evolução das temporadas, percebe-se que no Mundo Invertido habita monstros que desejam dominar o mundo e a jornada de salvação se inicia. 


Cultura local e a valorização artística 

Um dos temas mais bem trabalhados na série dos irmãos Duffer é a homenagem que prestam à cultura norte-americana, desde as referências literárias, como O Mágico de Oz e literaturas europeias como O Senhor dos Anéis e Harry Potter, até os easter-eggs do cinema e da música. Toda essa celebração à cultura, ao audiovisual e às mais variadas experiências com a música é o grande arcabouço que alimenta e sustenta as relações dos jovens, tanto da série, quanto de cada um de nós que vivemos fora “desse Mundo Invertido”. 

Três momentos são muito significativos da série: primeiro, a canção Never Ending Story, De Limahl, de 1984. A canção é uma linda história de amor protagonizada pelos personagens Dustin e Suzie (Gaten Matarazzo e Gabriella Pizzolo). A música cria memória, constrói laços de afeto, amizade e amor. Dustin e Suzie moram em estados diferentes, longe um do outro, constroem um vínculo que perdura por anos através da música. Outro momento é com Max (Sadie Sink), na penúltima temporada, aprisionada pelo vilão Vecna que ataca jovens com memórias ruins e sentimentos de culpa, Max se liberta da sua tristeza, dor e sofrimento, ouvindo Kate Bush, Running Up That Hill. O sucesso da cena na série foi tão grande que Kate, quase 40 anos depois, volta às paradas de sucesso. A canção é libertadora, salva Max de seus pensamentos mais obscuros. A música cria afeto, lembrança positiva, sentimento de bondade, caridade e amor. Max sente-se amada e perdoada pelo o que aconteceu no passado. 

Por fim, e ainda mais forte, é a cena protagonizada por Eddie (Joseph Quinn) que toca Master of Puppets da banda Metallica. Para Eddie, a música tornou-se Vontade, objeto de força e coragem e o fez encarar a guerra, mesmo com medo. A música proporciou a ele a força necessária para se sacrificar em nome do bem maior. Muito parecido com o que o filósofo Artur Schopenhauer diz. Literaturas como as de Tolkein, C.S. Lews e a de Rowling, revelam que a música organiza o caos. E ela é também ex nihilo, ela cria do nada. A música vai além de uma memória auditiva, ela é memória afetiva e onde houve dor, sofrimento, separação, a música é o alívio, não o preenchimento, mas a participação, o envolvimento de algo bom e generoso em nossa vida. 


Os jovens e seus fones de ouvido 

Não importa o ambiente, o lugar, o trabalho, a cidade, o número de pessoas que adotam o fone de ouvido como o seu mais fiel e permanente companheiro é grande. Entre os jovens, isso vira quase que um acessório essencial. Entre psicologias e filosofias, há quem os condenam, julgam por viver mais em relação com os dispositivos do que com o que acontece à sua volta. Em nenhum momento nos interessamos com o que eles escutam nos fones. A música já nos deu provas o suficiente que tem a capacidade de curar-nos. Ela nos liberta, e as vezes até nos transporta para uma realidade mais leve e acolhedora. Não se trata aqui de afirmar que estamos desconsiderando a realidade concreta em detrimento da fictícia e sonhadora proporcionada pelos fones. Vai além disso. É música. É melodia. É relação. É experiência de vida. E vida concreta. 

Na série da Netflix, o Mundo Invertido pode ser lido como uma metáfora de uma memória, consciência afetada por traumas, fobias, violências do passado que nos atormentam a cada dia. A música que ouvimos hoje pode se tornar a única ferramenta capaz de nos libertar desse mal que um dia nos atacou de forma tão violenta que nada e nem ninguém foi capaz de nos libertar dessa prisão. Quantos, hoje em dia, não sofrem abusos, violência sexual, escravidão, preconceito, racismo, discursos de ódio, homofobia, ataques cibernéticos, cancelamento digital... tudo isso que enche o nosso “Mundo Invertido” de monstros que insistem em nos prender numa dor que não pertence a nós. Os fones de ouvido podem guardar grandes segredos na vida de um jovem. Mas a música pode libertá-los mostrando um mundo novo, acolhedor e curador. 

Em Stranger Thins, a força libertadora está na relação de amizade, na acolhida do diferente, e no afeto construído com quem nos ama. Em nossa sociedade, a força também pode estar em nós, acolhendo e não julgando os outros.





Por Dione Afonso  |  PUC Minas

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