22 Nov
22Nov

A década dos anos 2000 para a TV americana é fortemente marcada pela febre das sitcoms que exploram ao máximo sua popularidade com personagens carismáticos em tramas leves e cômicas. O Canal NBC tornou-se referência nesse tipo de produção e, “para manter audiência, não hesitava em mudar o horário ou suspender as sitcoms que não davam certo. A emissora não pára de procurar enquanto não acha uma boa fórmula: uma comédia afiada, mas popular” (PRIGENT, 1997). Nesse contexto, Brooklyn Nine-Nine (2013-2021) é uma das sitcoms de comédia, cuja fórmula deu certo, apresentando uma trama popular sucesso de audiência.

Criada por Dan Goor e Michael Schur, o segredo de Brooklyn Nine-Nine consiste em trazer cenas do cotidiano ambientadas numa Delegacia de Polícia em Nova York. Apresentando o corpo principal de atores plural, a série “nos mostra, assim, personagens profundos e multifacetados, provando que, com respeito e representatividade, se constrói uma comédia capaz de conquistar todos os cantos e públicos do mundo” (PEREIRA, 2020). Simultânea a séries como The Big Bang Theory (Chuck Lorre e Bill Prady, 2007-2019), Friends (David Crane e Marta Crane, 1994-2004), How I Met Your Mother (Carter Bays e Craig Thomas, 2005-2014) e As Novas Aventuras de Christine (Kari Lizer, 2006 a 2010), Brooklyn Nine-Nine destaca-se por sua diversidade de elenco e suas abordagens sociais. 

Abordar questões de gênero, preconceito, homofobia, discriminação racial torna-se o grande ganho da produção. Segundo dados da GLAAD (Gays & Lesbian Alliance Against Defamation), uma ONG estadunidense que monitora a inclusão e representação de LGBTQIA+ na TV americana, em 2019 as produções televisivas bateram recorde nessa inclusão chegando a 8,8%. A produção de Dan Goor tornou-se destaque em incluir no elenco latinos americanos, personagens negros, gays, lésbicas e bissexuais nas narrativas.


Em Brooklyn Nine-Nine “nós escrevemos nossas próprias histórias”

As representações do comportamento humano que assistimos nas produções cinematográficas e nas mais variadas séries de TV espalhadas nos streamings, estão, a cada dia, preocupadas em abordar com mais fidelidade a diversidade de opiniões, culturas, crenças e relações. Se a arte representa a vida real, esta precisa estar fidedigna àquela, já que uma é inspiração da outra. Em 2021, os fãs das HQs puderam ser contemplados com um super-herói negro capaz de assumir o escudo símbolo americano. Um Capitão América negro! Outra representação que também foi um marco neste ano foi a inclusão de protagonistas LGBTQIA+ como ocorreu em Loki (HERRON, 2021).

Em Brooklyn Nine-Nine, vemos, em oito temporadas, a trajetória dos protagonistas enfrentarem situações cotidianas - por vezes, corriqueiras -, bastante emblemáticas e de cunho social discriminatório, racista e homofóbico. Muitas das situações são claramente identificadas como o “racismo cordial” que Turra e Venturi sinalizam. Partindo do fim, a oitava temporada (2021) abre o primeiro episódio, ambientado em junho de 2020 no contexto de pandemia e toda a equipe da 99 volta ao trabalho presencial após receberem a vacina contra a covid-19. Numa comemoração, o detetive Charles Boyle (Joe Lo Truglio) cita que “o que foi pior é a centena de anos de opressão vivida pelas pessoas negras nesse país. Uma opressão que existe até hoje”. E o mais interessante é que Boyle cita essa frase de um podcast chamado “Dois erros não fazem um branco” (SE08EP01, 2021). Já de cara percebemos que os últimos acontecimentos envolvendo um policial branco e um cidadão negro repercute na mídia - já tem até podcast sobre o assunto. Todo o episódio é ambientado após a morte de George Floyd. 

Por conta desse fato, a detetive Rosa Díaz (Stephanie Beatriz) decide abandonar a delegacia e seguir sua carreira como detetive particular representando que “o opressor só se solidariza com os oprimidos quando o seu gesto deixa de ser um gesto piegas e sentimental, de caráter individual, e passa a ser um ato de amor àqueles” (FREIRE, 1987, p.23). A violência policial a deixou revoltada e Díaz aparece tentando resolver outro caso de abordagem em que uma jovem negra havia sido abordada e sofrido racismo por dois policiais. Infelizmente ela não consegue resolver o caso de forma positiva o que revela o sistema de corrupção policial. 

Se “somos os “heróis de azul” (referindo-se ao uniforme dos policiais), nós deveríamos proteger e representar segurança e confiança para as pessoas. E não amedrontá-las” (SE08EP01, 2021). Nossa intolerância, prepotência, status, racismo, desumanidade nos faz com que não sejamos vistos como os mocinhos da história, mas os vilões, pois a gente maltrata, aborda, insulta, discrimina e agride. Quando a cliente de Rosa Díaz ouve da detetive que os policiais recorreram com uma liminar alegando agressão contra uma autoridade, a resposta dela é forte: “Eles alegam que foram agredidos, mas, quem saiu com um olho roxo fui eu, a mulher, a jovem, a negra” (SE08EP01, 2021). 

No entanto, na série, as representações de violência não ficam só na abordagem física e naquilo que é visto às claras. Muitos gestos que podem ser configurados como violência são identificados na série no decorrer das temporadas, como por exemplo: o primeiro episódio apresenta a substituição do capitão branco, que não realizava seu trabalho à frente da equipe, por um novo capitão, dessa vez, negro e homossexual nos permitindo fazer uma alusão ao enunciado preconceituoso “fazer serviço de branco” apresentando assim a crítica de que o dito branco poderia ter feito mais ao invés de ser tão permissivo e o negro assume o posto com o discurso “esse distrito está indo bem, mas eu quero torná-lo o melhor do Brooklyn” (SE01EP01, 2013) e com isso a série já começa desmistificando a máxima popular de que apenas o serviço de branco seja um serviço bem feito. 

Ainda na primeira temporada, o capitão Raymond Holt narra como foi seu primeiro dia no trabalho após ressaltar que na década de 60 “um gay assumido como eu nunca teria recebido o comando, havia poucos detetives negros” (SE01EP08, 2013), no ato de sua apresentação foi questionado se estava ali para se entregar, trazendo à luz mais uma máxima preconceituosa e racista de que todo negro seja bandido. Sob a mesma ótica, o sargento Terry Jeffords, também negro, é repreendido por um policial branco enquanto andava pela rua de sua casa simplesmente pelo fato de ser negro, embora tivesse tentado argumentar que ele também era da polícia o sargento foi submetido ao procedimento de revista até ser constatado que ambos eram policiais. Ao contar para os colegas da 99 o que havia ocorrido, um dos colegas, Jake, branco, disse que mesmo tendo feito diversas coisas suspeitas nunca foi repreendido, mas Terry foi, e segundo ele “já tive desentendimentos com policiais, mas dessa vez doeu, foi bem do lado de fora da minha casa” e “não fui discriminado por ser policial, fui discriminado por ser negro” (SE04EP16, 2016). 

“Ser negro é ruim? Nós somos negras, nós vamos nos encrencar que nem o papai?” (SE04EP16, 2016), com essas fortes indagações realizadas pelas filhas do sargento, ainda no mesmo episódio, que buscamos refletir o quanto o preconceito interfere na vida das pessoas e o quão difícil deva ser conviver com o medo de ser julgado e até mesmo punido por algo sem a existência de culpa a partir de um julgamento preconceituoso e prévio baseado na cor da pele. As lutas diárias de Holt e Terry contra o preconceito e racismo são fundamentadas no desejo de aproveitar da hierarquia policial para tentar mudar todos os cenários de racismo que vivem diariamente e que viveram ao longo da jornada.


A violência que não é só por trás das telas

25 DE MAIO DE 2020, MINNESOTA, CALIFÓRNIA - EUA

Nascido em Houston, George Floyd era alto, musculoso, alguém cuja estatura se destacava na multidão. Era jogador de basquete e futebol, além de gostar do Hip-Hop. Aos 46 anos, Floyd tinha uma filha de 6 com Roxie Washington. Mas, essa história mudou. Se teve que mudar, nunca saberemos, só sabemos que ela mudou de percurso do jeito mais cruel e desumano. Aos 25 de maio, Floyd foi vítima de preconceito e racismo que o levou à morte. Abordado por um policial, depois identificado como Derek Chauvin, este o asfixiou pressionando o joelho em sua nuca contra o asfalto. “Eu não consigo respirar”, foram as últimas falas de Floyd que ao serem ignoradas por Chauvin, o levou a óbito.

Era uma segunda-feira na cidade de Minneapolis, Floyd só teve a infelicidade de estar portando uma cédula falsa. A cidade é localizada no noroeste dos EUA. Will Smith, ator e produtor, naquela semana publicou em suas Redes Sociais lamentando como que ainda hoje o preconceito e o racismo ainda matam muita gente. “O racismo não está piorando, só está sendo gravado agora” e, foi o que aconteceu. No exato momento, Darnella Frazier estava passando próximo ao local do ocorrido, ela instantaneamente sacou o celular do bolso e filmou a cena.


30 DE MAIO DE 2020, SÃO PAULO-SP, BRASIL

51 anos, viúva, com 5 filhos e dois netos4. O nome? Pode ser Ana, Maria, Catarina, Beatriz, Carla, quantas demais mulheres e negras podem estar nessa situação. “Achei que eu ia morrer”, é o que ela fala hoje após ser asfixiada por um policial num bairro de São Paulo. Jogada no chão, arrastada, a vítima apresenta uma perna fraturada, escoriações no rosto e condições físicas e psicológicas fragilizadas a ponto de ter medo de sair de casa.

“Quanto mais eu me contorcia de dor, mais prazer ele sentia em colocar todo o peso de seu corpo sobre meu pescoço”, afirma a vítima. Em menos de uma semana após o assassinato de George Floyd nos EUA, o Brasil vivenciou mais uma agressão inspirada no racismo e no preconceito. Depois desses eventos, o brado “Vidas Negras Importam” ganhou o mundo revelando a descrença de uma humanidade que não aceita que uma vida possa valer menos que a outra.


O racismo cordial “ameniza” entre os brasileiros aquele sentimento de culpa, “a imensa maioria dos brasileiros demonstrou ter ou estar inclinada a ter atitudes preconceituosas em relação a pessoas negras, ou quis minimizá-las. Uma demonstração de cordialidade, talvez, para não ofender ainda mais aquele que se discrimina” (TURRA; VENTURI, 1995, p. 12). Os autores levantam a discussão sobre existir ou se ancorar no que se chama de “preconceito velado”, ou seja, enquanto escondemos ninguém é ferido e nem morre. Mas, preconceito é preconceito, não deixa de se configurar em violência. Lázaro Ramos em Na minha pele afirma que não existe isso de preconceito velado. “[...] o brasileiro não tem vergonha de ser racista, e sim de dizer que é racista. Isso nunca fez sentido pra mim. Racismo é racismo, ponto. Temos que combatê-lo” (RAMOS, 2017, p. 49).

Os gestos que configuram violência hoje em dia estão dos mais sutis até os mais escancarados à luz do dia, como nos casos que citamos acima. Termos como “seu cabelo é estranho”; “que nariz esquisito”; “não sei porque esse menino está estudando”; “olha essa mulherzinha…” dirigidos a um colega na escola ou em redes sociais abrem espaço para um ambiente violento e de discursos de ódio. Discursos também que são machistas e homofóbicos como Brooklyn Nine-Nine combateu durante todas as oito temporadas.

Não há espaço para o machismo nem na literatura, como no caso de um escritor de ficção/fantasia que começou a receber ameaças de seus fãs por ele ter afirmado que um de seus dragões era fêmea. “Não existem dragões femininos. As mulheres não são fortes o bastante para serem dragões” (SE04EP08, 2016). E, nem na vida real: “Todo Oficial Superior que manda em mim sempre foi um homem. Seria hilário trabalhar pra uma mulher um dia” (SE04EP20, 2016), afirma a detetive Rosa Díaz encorajando Santiago a dar mais passos em sua carreira policial. Uma comédia, que nos faz rir, mas rir para resistir, situações que seriam cômicas, engraçadas, mas, que são trágicas, desumanas, sem nenhum senso de alteridade e de empatia.


Alerta de spoiler da vida real - considerações finais

Não temos a pretensão de deixar uma conclusão. Esse tema não se encerra aqui, assim como ele também não teve aqui seu início. Essas situações de racismo, preconceito, homofobia, machismo… já existem há muito tempo. Em cada época, surgindo de acordo com as prefigurações sociais. Ser abordado na porta do banco por dois policiais, simplesmente por usar um boné, estar de mochila e ser negro é racismo sim e isso é violência (RAMOS, 2017, p. 33-34); desconfiar que um negro é juiz simplesmente por ser negro é sim violência (TURRA; VENTURI, 1995, p.51); abordar um homem por caminhar na rua simplesmente porque é negro, é sim, violência (SE04EP16, 2016) e você vai continuar encontrando muitas cenas como essa ano após ano.

Essas cenas que assistimos cotidianamente revelam a presença de uma sociedade hostil. Tal hostilidade produz entre os indivíduos a formação de grupos que, ao reproduzir esses gestos, reproduzem entre si, enquanto grupo, uma ambiência tóxica pautada não no valor social e comunitário, mas em valores pessoais, antidemocráticos, superiores e segregacionais. De acordo com Nunes (2006)

“apesar do discurso que nega ou ameniza a presença do preconceito e da discriminação racial no país, não é difícil ver manifestações de racismo no dia-a-dia da vida social brasileira. Ora ele é escancarado, como nos massacres frequentes, ora é silencioso como no olhar policial que põe constantemente os negros sob suspeita” (NUNES, 2006).

Como se configura, por exemplo, a cena que assistimos há poucos dias, de um policial abordar um motorista paraplégico, na rua, por ser negro? E na abordagem, não dar ouvidos à vítima quando ela mencionava sua condição física enquanto o policial o aborda violentamente arrastando-o para fora do carro? (POLÍCIA…, 2021) Não se configuraria em violência explícita? Violência verbal? Racismo? Discriminação? Como chamaríamos a cena na qual uma estudante de jornalismo foi impedida de entrar na sala de aula pelos outros alunos porque ela era negra e tinha o cabelo estilo black? Não seria também uma configuração de violência? “Há diferença de tratamento”, afirma Nunes (2006), “[os negros] são tratados com mais severidade, desde a instância policial, até o tribunal, como se a criminalidade e a possibilidade de ‘perturbar a ordem social’ lhes fosse inerente” (NUNES, 2006).

Esse “racismo cordial” conceitualizado pela pesquisa de Turra e Venturi (1995) também está presente nas campanhas de publicidade, divulgações comerciais, no marketing, no cinema e na televisão. Quem não se lembra da campanha da Dove na qual retratava uma mulher negra que se transformava numa mulher branca ao usar os produtos da tal marca? Na campanha, “ao se colocar a mulher negra primeiro, parece se representar como ‘o sujo’ que fica ‘limpo e branco’ depois de usar o sabonete Dove” (DOVE…, 2017). Exemplos assim, infelizmente encontramos aos montes. Inclusive, nesse exato momento, pode sair uma notícia nos portais jornalísticos de alguém sendo abordado na rua, na escola, no trabalho, até mesmo na própria casa, entre os seus… na família… pois, em relação ao racismo e à sua existência, “os brasileiros sabem haver, negam ter, mas demonstram, em sua imensa maioria, preconceito contra os negros” (TURRA; VENTURI, 1995, p.11).

“Nosso papel não é falar ao povo sobre a nossa visão do mundo, ou tentar impô-la a ele, mas dialogar com ele sobre a sua e a nossa” (FREIRE, 1987, p. 55). Não é um problema nosso, mas que deve doer em todos nós. Você pode não estar sofrendo racismo, não ter um estilo de roupa diferente, não usar um cabelo estiloso, mas, sentir a dor do outro, colocar-se no lugar do outro é fundamental, é humano. No seu dia a dia, na sua sala de aula, no seu trabalho, quando presenciou uma cena de racismo você se colocou no lugar do outro? Você reagiu, ou se omitiu? A detetive Díaz não hesitou: “eu não poderia ignorar o fato de que policiais como eu estavam fazendo coisas com pessoas como eu. Gente igual a mim” (SE08EP01, 2021) e assim como ela, nós devemos fazer o mesmo.



* Texto apresentado no IV Colóquio Séries de TV 

da UEMG em novembro de 2021.



Por Dione Afonso  |  PUC Minas

Por Jaqueline Emerick  |  FAVALE, MG

Comentários
* O e-mail não será publicado no site.