11 Apr
11Apr

“O homem forte que sempre conheceu poder, pode perder o respeito por esse poder, mas o homem fraco conhece o valor da força e conhece a compaixão. Mas não importa o que aconteça amanhã. Me prometa uma coisa: que vai continuar sendo o que é, não um soldado perfeito, mas um homem bom”.     

[Abraham Erskine, o cientista que criou o soro do super soldado interpretado por Stanley Tucci ].   




“Pode o subalterno falar? O subalterno não pode falar. Não há valor algum atribuído à ‘mulher-negra pobre’ como um item respeitoso na lista de prioridades globais. A representação não definhou, a mulher como uma intelectual tem uma tarefa circunscrita que ela não deve rejeitar com um floreio” (RIBEIRO, 2017, p. 42). A autora Djamila Ribeiro em Lugar de Fala, explicita o pensamento de Spivak ao dissertar sobre o lugar de fala que os grupos sociais ocupam entre nós. No texto acima em que Ribeiro cita a autora, vê-se claramente que o lugar de fala concede não apenas voz, mas a voz enquanto poder, existência, lugar e identidade. Identidade essa que é essencial para delinear as políticas públicas que regem os países. 

Pode, por exemplo, um herói negro ser símbolo de heroísmo de uma nação? A América aceitaria um Capitão América negro empunhando o seu escudo representando o país? 


Um legado americano 

Em Vingadores: Ultimato (Anthony e Joe Russo, 2019)Steve Rogers, interpretado por Chris Evans, entrega o legado do escudo do Capitão América a Sam Wilson (Anthony Mackie). Um símbolo de esperança. De paz. Sinal de que não importa quando, se a guerra voltar, se pessoas estiverem ameaçadas, o escudo estará ali, empunhado, pronto para combater o inimigo e trazer de volta a paz e a justiça. Esse é um sinal para as futuras gerações de que a esperança continuará presente! 

Um legado que, pareceu ser pesado demais a Sam. Um símbolo que não faz jus à sua vida, seu caráter e sua condição social. Sam é negro, e sabe que um negro representando a América não seria algo tão natural assim de levar a diante. O legado do escudo é um legado feito por homens brancos destinado a brancos. Um negro empunhar esse escudo pode se tornar uma grande ofensa a essa trajetória. Em outras palavras e baseado na obra de Ribeiro, “esse não seria seu lugar de fala”. Uma vez subalterno, sempre subalterno. 

Portanto, Sam Wilson decide fazer do escudo um memorial intocável para honrar a memória daquele que fez da América e do mundo um lugar melhor e que com sua vida e sacrifício não mediu esforços para fazer da paz e do diálogo as melhores armas contra os inimigos. Usar uma arma ou espancar alguém poderia ser algo fácil para Steve Rogers, mas não era o caminho mais humano a seguir. Isso não é coisa de herói! 


Um símbolo para a América 

A série Falcão e o Soldado Invernal é a segunda produção que marca a Fase 4 do MCU – Universo Cinematográfico da Marvel – e também a segunda produção para TV lançada na plataforma digital da Disney + em março de 2021. A série tem, inicialmente, uma temporada de 6 episódios e é marcada pela trajetória dos heróis Falcão / Sam Wilson e o Soldado Invernal ou Lobo Branco / James Buck interpretado por Sebastian Stan.

[contém SPOILERS]

Buck constantemente questiona o fato de Sam ter abandonado o escudo. Para Buck, Sam traiu Steve, traiu o melhor amigo que tinham. Traiu e jogou fora todo o discurso heroico de quem doou a vida pelo país. Mas o que Buck talvez não tenha entendido é que Sam Wilson, filho de periferia, nascido numa família pobre, negro, teve que trabalhar pra se sustentar e sua realidade econômica pós-blip não ficou diferente. Sarah Wilson, sua irmã, também está tendo que trabalhar, lutar para pôr alimento na mesa para os filhos. 

A América não precisa de alguém com o caráter de Sam e ser ícone de bondade para o mundo. Este não é seu lugar de fala. A América não é negra. Como poderia um herói negro representa-la? Estampá-la em outdoors pelo mundo? Ser ícone de heroísmo e justiça? Sam também pensava assim. Há uma narrativa política sendo costurada no enredo da série que coloca a supremacia branca como política autoritária e única capaz de salvar o mundo. Sam estava sendo manipulado por uma política de fachada que consolidava o real interesse de “devolver” o escudo para quem, de fato, tinha qualidades para representar a América. 

Assim, o escudo segue outro caminho. O soldado Walker (Wyatt Russell) era o mais provável candidato para representar o país. Ele sim, um perfeito protótipo de tudo o que o país defende. Assumir o legado do escudo para Walker não se tornou um ato de heroísmo e nem de alteridade. Tornou-se mais um ato político racista daqueles que o colocaram como tal. Ser negro e ser cidadão americano não faziam parte da mesma realidade. Ou um ou outro. Ou você é da América ou você é pobre. 


O verdadeiro legado do escudo 

O discurso narrativo que a série nos entrega é um discurso político que denuncia descaradamente o preconceito racial e a discriminação social. Ao lado de John Walker vemos o companheiro Lemar Hoskins (Clé Bennett), chamado de Estrela Negra. Hoskins era um verdadeiro amigo. Gentil, bondoso, alegre, sem ar de superioridade, tudo o que Walker não representava. Tudo o que a América não representava. 

Hoskins representa o legado do escudo muito mais do que o amigo Walker. Quando em Capitão América: o primeiro vingador (Joe Johnston, 2011) vemos o experimento científico que torna Steve Rogers no primeiro super soldado, o cientista, antes de lhe injetar o soro, diz que não é a qualidade física, a super força, a condição externa, saúde que o faria especial (Steve era um asmático de 40 quilos num campo de batalha), mas era o que ele tinha no coração: bondade, coragem, amor e humanidade. Foi escolhido por ser bom, generoso, corajoso, humilde, esse sim, um verdadeiro legado. Alguém que veio do Brooklyn e que não tinha vergonha de dizer isso. E o soro, só iria aperfeiçoar suas qualidades: “o que é bom iria ficar ótimo; o ruim iria ser pior”. 

Quando Walker injeta o soro em si, toda a sua arrogância, vingança, maldade, superioridade, autoridade, ganância se manifesta em maior grau. Walker mancha literalmente o legado do escudo com sangue inocente. 


O escudo torna-se um ato de protesto político 

Porque Hoskins não poderia ter sido o Agente Americano a seguir o legado do escudo? Por que ele era negro. Porque ele era um jovem que teve que abandonar a escola no Ensino Médio por não ter condições financeiras de seguir com os estudos. Porque ele era de família pobre. A única coisa que lhe restou foi o exército. Servir na Guerra e talvez, morrer por lá. E foi aí que se tornou o melhor amigo de Walker. Foi grato por Walker lhe proteger, amparar. E foi em nome dessa amizade que Hoskins morreu. Deu a sua vida pelo amigo. Walker, por sua vez, tomado de ódio, o vinga. Mata um inocente manchando o escudo de sangue. 

Esse é o Agente Americano, o legado da América. Não importa sua conduta, pelo menos ele não é um negro... 

A expressão é forte, choca-nos. Pesada. Mas a morte, o assassinato de tantos negros, o feminicídio negro também é pesado entre nós. A morte de Hoskins só afirma o quanto a nossa sociedade ainda prega um discurso de segregação. Separa os ricos dos pobres e beneficia uma minoria milionária enquanto massacra uma maioria pela fome ou pela falta de segurança pública, saúde pública, proteção. A Marvel, pela primeira vez, quebra seu protocolo de produções com indicação livre e mostra uma cena de sangue, morte, e ela escolhe esse momento para trazer isso para as telas. 

O escudo manchado de sangue é um protesto contra tantos negros, inocentes, pobres e mulheres que são assassinatos por atos políticos que não os protegem e os consideram como lixo da sociedade. E não se importa em liquida-los. Voltando à Djamila Ribeiro, “pensar nesse lugar [dos subalternos] como impossível de transcender é o mesmo que legitimar a norma colonizadora, pois atribuímos poder absoluto ao discurso dominante branco, masculino, hétero e rico. [...] Validar esse discurso como absoluto significa também acreditar que grupos oprimidos só podem se identificar com o discurso dominante e nunca serem capazes de pensar suas próprias condições de opressão a que são submetidos”. 

E realmente “me incomodou o fato de ter feito sete filmes da Marvel, onde todo produtor, todo diretor, toda dublê, todo figurinista, toda pessoa era branca. Tivemos apenas um produtor preto; o nome dele era Nate Moore. Ele produziu Pantera Negra (2018)”, disse Anthony Mackie para a Variety





“E então chega a dura realidade do dia em que você tem que dizer aos seus filhos ‘você deve abrir os olhos para o mundo à sua volta, para o modo como a polícia te vê como jovem negro’. Eu fiz meus filhos de 7 e 11 anos sentarem para ter uma conversa longa sobre isso. E você sabe, eles compreenderam. Eles só não entenderam a falta de humanidade de uma pessoa para fazer isso com outra. Quando eu era criança, como a maioria dos meninos queria ser bombeiro ou policial [...] Eu quero que meus meninos tenham esses sonhos. Eu quero que meus meninos olhem para a polícia e, você sabe, oficiais do exército e a polícia em um nível mais alto, mas ao mesmo tempo você precisa ser honesto com eles sobre o que acontece” 

(Anthony Mackie em entrevista para Jimmy Fallon no programa “The Tonight Show”, 2020)





Por Dione Afonso Jornalismo PUC-Minas

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