05 Oct
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Desde criança, o universo fictício dos super-heróis sempre incutiu em nossa formação humana valores a respeito do bem e do mal. Aprendemos que o Batman é o herói que salva o mundo e o Coringa, o Pinguim, o Charada são as pessoas más. Os vilões. Aqueles que querem destruir a humanidade. Portanto, desde muito cedo, aprendemos que, para ser pessoas boas, temos que seguir os conselhos do Batman, do Superman, do Capitão América, da Mulher Maravilha… Tais narrativas presentes nas séries de animação da TV e depois se popularizando nas adaptações das HQs para as salas do cinema apresentaram valores como humanidade, alteridade, empatia, bondade, família, amizade, sacrifício... Assistir um herói se sacrificando em nome do bem maior e da vida das pessoas era significativo na formação dos nossos valores humanos. 

Todo filme fictício baseado na trama de um super-herói, ou de um grupo de heróis é sempre baseado num único estilo de roteiro: há uma grande ameaça contra a humanidade, surge um ser humano com poderes extraordinários e salva a Terra. É sempre esse o script da história. Desde sempre o bem sempre vence o mal. O tempo de vitória do mal é cronometrado e a trama faz o herói dar a volta por cima e resgatar a boa ordem e a paz. Contudo, desde Malévola (2014, Robert Stromberg), Malévola: dona do mal (2019, Joachim Ronning), Coringa (2019, Todd Philipps), logo depois com a vilã Arlequina em Aves de Rapina: Arlequina e sua Emancipação Fantabulosa (2020, Cathy Yan); também nas adaptações para o streaming com The Boys (2019, Eric Kripke), a animação Invencible (2021, Robert Kirkman) e Loki (2021, Kate Herron); e, as mais recentes produções cinematográficas de O Esquadrão Suicida (2021, James Gunn) e de Cruella (2021, Craig Gillespie), vemos que a representação personificada nessas narrativas subvertem a ordem social e moral, no qual, os holofotes são desviados dos heróis - ou seja, daqueles que, desde criança, aprendemos a defender porque eles são os mocinhos - e voltados para os vilões (aqueles que aprendemos a identificar como o lado mal do mundo, pessoas maldosas e indignas de confiança). Será que agora é hora do mal vencer sobre o bem? 


Para onde Round 6 conduz essa reflexão? 

Lançada recentemente na plataforma da Netflix, Round 6 levou 10 anos para se tornar real. Seu diretor coreano Hwang Doung-Hyunk não desistiu de apresentar um universo nostálgico ao mesmo tempo que é assustador e curioso. Em sua produção, a série de 9 episódios iniciais nos apresenta um grupo de “candidatos” recrutados que se destacam por suas vidas miseráveis afundados em dívidas quase que impossíveis de serem quitadas, a não ser, por um milagre. O jogo a qual são levados pode ser, talvez, esse milagre que os salvará... ou os fará perder a vida. Seguindo a trama de Gi-hun (Jung Jae Lee), os episódios nos levam a nos afeiçoar aos personagens, mesmo sabendo que a vida deles será curta demais. Até em que ponto vale nos arriscar para recuperar o prestígio social? Até em que nível é saudável esse estilo de narrativa gore, tortur porn, slasher, triller de terror e horror? A violência e a presença do mal não se trata de um evento exclusivo do nosso tempo. Cada período da história da humanidade, traços de guerra, de violência explícita, mortes, dizimação e assassinato foram surgindo seguindo a evolução e o tempo atual de cada período. Hoje, não obstante, vemos isso presente também nos roteiros de novelas nas quais a adoração e o deslumbre do público com a imagem dos vilões é bastante explorada pelos escritores. Uma receita que faz sucesso. 

Não se trata de afirmar que o mal está se sobrepondo ao bem, mas, quando presenciamos certa empatia ao personagem do Coringa, por exemplo, percebe-se que o meio social em que vive - tanto o personagem, quanto as pessoas que o assiste - é uma sociedade problemática, violenta, doente, segregacional. Quando vemos a personagem Cruella, percebe-se o quanto um sistema capitalista, machista e consumista degrada o ser humano e explora as mulheres e as minorias sociais. Ou seja, não se trata de induzir a violência através do cinema ou das séries de TV, mas de perceber o quão uma cena tão violenta, assustadora e perversa está sendo compatível com o mundo em que vivemos. Round 6, apesar de ter uma trama focada nos jogos de infância que ganham uma versão mortal, também traz em segundo plano o problema da corrupção policial e do tráfico de órgãos, além de apresentar um grupo de magnatas que se divertem com a morte alheia e o ridículo do humano miserável que não “venceu na vida”. E, por ser quem é, ele me diverte com sua fraqueza, vulnerabilidade, e sua condição de implorar pela própria vida. 


Round 6 e a atualidade 

Uma sociedade que não se importa com quem está nas calçadas, com quem está passando fome, ou com quem sofre as exclusões do mercado de trabalho, do sistema capitalista que é desumano e do mercado da beleza e da moda que a cada dia cobra de nós o corpo perfeito e a beleza perfeita, é uma sociedade desumana e cruel. Nela o bem é uma praga que precisa ser combatido. Nesse caso, o mal, as más intenções e as ações de violência acabam sobrepondo os gestos de bondade, amor e humanidade. Não vivemos o horror de uma sociedade violenta ou de uma comunidade perversa a fim de que o mal impere sobre nós. Vivemos as situações atuais, de dor, pandemia, guerra, polarização política a fim de vencer tudo isso e mostrar que o bem e a esperança devem prevalecer sobre todo o mal. No fundo, as narrativas que fomentam o ódio e canonizam os vilões como pessoas que tentam instaurar seu código de conduta revelam a nós que o que estamos fazendo está errado e a sociedade que nos guarda está doente. É preciso salvaguardar o ambiente em que estamos inseridos a fim de conduzi-lo a uma comunidade mais fraterna e pacificadora. 

A população tende a esquecer os acontecimentos dentro de sua realidade e, essas adaptações, nos ajudam a recordar e criticar esses fatos. A sociedade em que vivemos tende a ser cruel, penalizando aqueles que seriam considerados “fora do padrão”. Mesmo aquele que “venceu” a temporada de jogos, o nosso personagem principal Gi-hun, a experiência de quase morte que experimentou naquela ilha o traumatizou. Sair de sua condição social de miserável, órfão, sem família e sem prestígio não foi o bastante. Parece que ir até às últimas consequências em busca de um prêmio bilionário não foi o bastante para lhe devolver a dignidade e a alegria de viver tranquilamente pelas ruas como era antes... como era em sua infância... “batatinha frita, 1, 2, 3”.




Por Dione Afonso  |  PUC Minas

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