O caso da Chacina da Candelária, aconteceu no Rio de Janeiro em 1993. Na madrugada do dia 23 de julho, adolescentes e jovens com idades entre 11 e 19 anos foram friamente assassinados por policiais e milicianos na escadaria da Igreja de Nossa Senhora da Candelária, no centro do Rio de Janeiro. Oito jovens foram mortos no atentado e a justificativa, segundo dados do jornalismo da época é que no dia anterior, os meninos teriam apedrejado um carro da Política Militar. Hoje, ao visitar a Igreja da Candelária é possível ver uma cruz de madeira com o nome dos mortos fincada na frente da igreja.
Dirigida por Luis Lomenha e Marcia Faria, a minissérie de quatro episódios se ancora no recurso ficcional para mostrar a brutalidade que foi o massacre na Candelária. Cada episódio evoca o massacre sob a perspectiva de um olhar: os jovens Jesus, Douglas, Sete e Pipoca protagonizam, cada um, seus sonhos de “gente grande”. Cada um sonha com um futuro longe dali, ou pelo menos, longe das ruas, das drogas, da criminalidade, da pobreza. Enquanto Douglas (Samuel Silva) é um adolescente atrevido que não se conforma com o enterro do pai ser de forma indigente; Jesus (Andrei Marques) é aquele menino calado, centrado. Sete (Patrick Congo), ao atingir a maioridade vê as possibilidades de sair dali ainda mais perto, mas é enganado por Sérgio (Bruno Gagliasso) que o abusa em troco de dinheiro. Pipoca (Wendy Queiroz) é a mais nova do grupo, abandonada pela mãe, uma menininha que perdeu até mesmo o nome e ganha este apelido nas ruas.
O primeiro ponto positivo desta minissérie é que a história é contada partindo do ponto de vista de quem vive o drama de ser abandonado e morar nas ruas. Em nenhum momento, vemos um salvador da pátria, branco, rico, poderoso, contando a história. Tudo começa com Douglas que, ao perder o pai adotivo não se conforma em vê-lo tratado como indigente. Não superando o luto o adolescente move céus e terra para ver seu pai tratado com dignidade mesmo depois da morte. A minissérie de Lomenha e Faria só dá certo porque os sonhos são mais importantes na narrativa do que a brutalidade que aconteceu. Não há romantismos quanto à chacina, que é o ponto central da história, mas nem por isso, a trama precisa girar em torno da maldade cometida. Ambientada 36 horas antes da chacina, cada episódio reinicia a temporalidade afim de acompanharmos cada jovem em sua jornada.
Esta tomada de decisão de roteiro tira Os Quatro da Candelária do grande guarda-chuva que se chama true crime. Não, não é um true crime. Vemos os tiros, as pedradas, mas não vemos o sangue, o terror, o horror, a pancadaria.... Há muito realismo, sim, mas há a fantasia, a aventura e a ação. A gente até se divertiu quando Jesus subiu no teto do metrô e tentou se equilibrar nele em movimento. Na mesma intensidade, a gente sofreu com ele quando tirou a primeira vida ao atirar no segurança da fábrica que eles assaltaram. Tudo é muito bem equilibrado, bem colocado e com suas conexões verdadeiras e honestas. Há, com certeza, um antro de prostituições e vendas de drogas, mas, os diretores, mesmo não escondendo isso do público, não fez disso a sua principal força narrativa.
Nem mesmo o padre da igreja ganhou destaque mais que o essencial. Uma única cena, em que ele conversa com Jesus, dá a ele uma muda de roupa limpa e um banho, é o bastante e isso só enriqueceu a história do jovem que foi protagonizada por Andrei Marques. Vemos no olhar de Marques algo que não encontramos nos outros quatro jovens. Parece que jesus sente algo muito forte por dentro, e que seu pedido de socorro é sufocante e que uma hora ele precisará de gritar. E a atuação de Samuel Silva, como Douglas é visceral, digna de oscar. Que menino bom, potente, forte, presente!
Se, com Samuel Silva, o olhar de Douglas, seu personagem muito nos questionou, os atores Patrick Congo e Wendy Queiroz nos renderam boas risadas e aventuras. A começar com o local que Sete (Congo) vive, ou dorme. Um lugar acima da rua, uma espécie de terraço no qual só ele sobe e ali ele sonha os seus mais profundos desejos. Enquanto que Pipoca é uma menininha doce que sonha com o retorno na mãe que a abandonou quando ainda estava de chupeta. Pipoca tem esse nome por não se lembrar mais do nome de batismo que seus pais deram. A série retrata que a pequena foi deixada por questões financeiras e que a mãe não teria condições de sustenta-la.
Sete sonha em se tornar marinheiro. Acabou nas ruas porque tinha em casa um pai homofóbico e violento. Revelando sua sexualidade, Sete acabou tornando Garoto de Programa. Assim ele conheceu Sérgio (Bruno Gagliasso), um vendedor de joias, casado e com filhos que vivia aventuras com Sete ludibriando-o e prometendo para o jovem um futuro que ele nunca iria ter. Pipoca e Sete eram como irmãos, inseparáveis. Ela sonhava em aparecer na TV para que sua mãe a visse e fosse pegá-la de volta. Sua inocência não permitia que ela pensasse que o abandono da família era definitivo.
Enfim, entre tantas formas de se contar o que houve na Chacina da Candelária, esta minissérie é um bom aperitivo para conhecermos uma realidade que houve em 1993, mas que ainda se repete, se não nas escadarias daquela igreja, por todos os cantos do Brasil, em praças e centros urbanos. O que aconteceu naquela madrugada foi a resposta de uma falta de humanidade, de fraternidade e de compaixão. Todos somos iguais. Somos seres humanos, independente do poder aquisitivo e da situação que nos encontramos. Na série, assistimos a expulsão das pessoas da frente da Igreja para dar lugar a um casamento de luxo, de um casal que não vive ali e que nunca entrou naquela Igreja pra rezar. Enquanto que Douglas, Sete, Pipoca, Jesus e tantos outros, sempre dormiram ali, e nunca puderam pisar lá dentro para conversar com Deus.
Por Dione Afonso | Jornalista