13 Oct
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"Um leitor é um transmissor, não um criador", escreveu Stephen King no conto "O Telefone do Sr. Harrigan", de 2020. Há muito, fui (e ainda tento ser) um leitor assíduo das obras inglesas de Agatha Christie, mundialmente reconhecida como a Rainha do Crime. Mas obras do gênero do terror nunca fizeram parte do meu gosto literário, mesmo que esse gênero surgia nas narrativas de Christie. Então, você, que me acompanha em meus escritos, pode me questionar, como que eu cheguei a King?

A válvula de escape para ter em minha estante (e literalmente) uma obra de Stephen, foi logo após eu ter assistido à adaptação do cineasta estadunidense John Lee Hancock Jr., O Telefone do Sr. Harrigan, pela Netflix. O filme traz para as telas o conto de horror sobrenatural criado pelo King. Não curto muito literaturas do gênero, mas sou fascinado pelo audiovisual do terror, horror, slasher etc. Vai entender as nossas pretensões, não é mesmo?

Mas o que me faz divagar em mais uma crônica aqui não é o fato de ter adquirido, pela primeira vez, uma literatura do gênero, e nem trazer mais uma crítica cinematográfica. Mas é a discussão que a obra abriu a respeito dos caminhos que o jornalismo foi assumindo com o advento dos dispositivos móveis de acesso à Internet e a crise dos jornais e revistas impressos.

O Sr. Harrigan, um bilionário, ex-empresário, mas que ainda sustenta ações multimilionárias na Bolsa de Valores, decide contratar um adolescente para ler para ele após, por conta da idade, suas vistas começar a se cansar. Ele se apresenta como um apaixonado pelo conhecimento. E lê de tudo. O jovem Craig (interpretado pelo ator Jaeden Martell) já na fase da juventude também é alguém que admira e se deixa provocar pelo saber. Possui um talento magnífico para a leitura. Sonhava em fazer faculdade de roteirista, pois ele queria ser alguém que pudesse criar suas próprias histórias ao invés de se "apropriar" das que já existem nos livros.

Contextualizado na era em que os iPhones começaram a chegar no mercado, Craig decide presentear o Sr. Harrigan com um aparelho desses e o insere na cultura digital. Ele mostra que as notícias que Harrigan lê nos jornais já chegam pra ele atrasadas, mas, graças à Internet, ele pode conferir tudo em tempo real. Primeiro veio o fascínio pela agilidade da tecnologia e depois veio a decepção e o pavor por perceber que o sistema digital não valoriza a produção, a economia e que os jornais, jornalistas, meios de comunicação começam a perder poder financeiro, pois por ali você pode consumir o que quiser, quantas vezes quiser e a na quantidade que quiser sem pagar a mais por isso. 

O espírito de Harrigan sempre foi de um empreendedor. Logo, se você produz algo, você merece receber por isso. Se algo não é lucrativo, você deve abandonar logo. Quando soube que Craig desejava seguir carreira de roteirista, Harrigan pesquisou no Google a respeito e disse a Craig que essa carreira não o traria sucesso. 

Enquanto Harrigan só tinha o impresso ele assinava os principais jornais do estado e pagava por cada um deles mensalmente. Qual é o sentido de tudo isso? Você acha correto consumir por algo que você não produziu, que foi feito por outra pessoa, pelo trabalho de outra pessoa e não pagar nada por isso? "Os anúncios, a propaganda, são a alma do jornalismo", afirma, e, enquanto naveguei por telas desse telefone, eu não vi nenhuma propaganda que estivesse sustentando esse sistema de informações, disse assustado, o sr. Harrigan a Craig.

Sobre o elemento do terror sobrenatural que o filme apresente, bom, isso você terá que assistir. Mas, afirmo que é irrelevante e pequeno, diante de uma aula de jornalismo que o conto de Stephen King nos deu. O filme não tem a pretensão de focar no terror sobrenatural. Ele se torna irrelevante quando a relação de amizade e a perfeita construção de personagem de King ganham espaço e conduzem a história.




Por Dione Afonso  |  PUC Minas

13.out.2022

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