06 Nov
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Uma antologia, escrita por diversos autores consagrados e entregues nas mãos de um cineasta que é o mestre dos monstros cinematográficos: Guillermo del Toro. O diretor coordena e controla as histórias, mas entrega a direção de cada uma delas a parceiros do audiovisual com a missão de adaptar pequenas histórias escritas por nomes como H.P. Lovecraft, Aaron Stewart-Ahn, o próprio del Toro, entre outros. O Gabinete de Curiosidades é uma antologia, não tem o compromisso de te entregar um enredo condizente e fechado entre um episódio e outro, contudo, para quem conhece o trabalho de del Toro, ele próprio tenta dar unidade às histórias, partindo do que elas mais nos tocam: nossos traumas, medos, dramas, angústias, ambições...

A produção foi uma das mais aguardadas do mês pelos assinantes do streaming e debutou com uma boa aceitação pela crítica e pelo público. Histórias como "Ratos de Cemitério", "Lote 36", "O Murmúrio", "Autópsia" e "Sonhos na Casa da Bruxa", tentam nos atingir misturando o sobrenatural com necessidades humanas e reais. De Mika Watkins e direção de Catherine Hardwicke, em Sonhos na Casa da Bruxa, por exemplo, vemos um rapaz (Rupert Grint) desesperado tentando entrar em contato com o outro lado da vida para trazer de volta sua irmão que morreu. Murmúrio coloca em cena um casal (Eric André e Essie Davis), que não consegue superar o luto  da filha que morreu ainda bebê, numa casa mal assombrada. 


Quando o terror é real e o medo nosso inimigo

Temas como a ambição, a busca pelo corpo perfeito, a necessidade de poder e o sucesso no trabalho estão presentes no decorrer dos episódios da antologia de del Toro. Henry Kuttner foi quem escreveu Ratos de Cemitério e a direção ficou por conta de Vincenzo Natali. A personagem protagonista do conto se vê ludibriada em busca de um poder que não seria honesto possuí-lo. Diz a narrativa que para quitar uma dívida de agiota, o salvaguarda de um cemitério, Masson, decide roubar os corpos, extraindo deles as joias nas quais foram enterrados junto dos mortos. Porém, Masson percebeu que outra coisa estava roubando os caixões por baixo da terra. O episódio mistura medo, criaturas horripilantes e asquerosas, ratos gigantes e assustadores. 

A história é ambientada em Salem no ano de 1900. Masson também tinha fobia de ratos, o que intensificou o horror do conto. Mas a busca pelo corpo perfeito, pela beleza ideal, pela pele bonita e sempre bela também torna-se pauta do terror. O conto Por Fora, tem Ana Lily Amirpour como diretora da adaptação escrita por Haley Z. Boston. A história segue a personagem Stacey, que tenta se encaixar no local de trabalho tentando ser amiga próxima das colegas de trabalho. Contudo, sua aparência parece não se "adequar" ao padrão normativo do lugar, nisso, Stacey inicia uma busca desenfreada pela pele perfeita. De todos os episódios é o que menos nos assusta e dá medo, até vermos Stacey empalhar o próprio marido que insistia que não havia nada de errado com a esposa e que ele a amava do jeitinho que ela era.

Stacey, não satisfeita, inicia um processo de "troca de pele", induzida pelo produto mercadológico, um cosmético que "faz milagres". A moral dessa história se baseia no, "vale tudo pra ser bonita e perfeita". E para Stacey, realmente, valeria tudo, ela estava disposta a fazer qualquer coisa. O maior medo dela tornou-se seu inimigo. De uma mulher simples, delicada, feliz com o casamento, sensível à natureza, tornou-se uma jovem de pele renovada, mas vazia de discurso, amiga das mais belas do trabalho, mas, sem amor, sem marido, sem casamento, mas com amizades fúteis.


A grande centralidade da obra de del Toro

Portanto, a obra antológica de Guillermo del Toro consiste em nos amarrar em várias histórias que têm um objetivo em comum: fazer-nos refletir sobre aquilo que mais nos aflige. Ao assistir O Murmúrio, por exemplo, escrito e dirigido pela Jennifer Kent, vemos o quanto que o luto é uma dor difícil de se curar. E se nós decidimos nos fechar, os próximos passos da vida vão se tornando cada vez mais pesados de se dar. O casal naquela casa mal assombrada percebeu que era preciso se afastar até mesmo do trabalho e conversar sobre o que aconteceu. A morte da filha, ainda bebê era uma cicatriz incurável, mas que precisava de um ponto final afim de dar um recomeço àquele casamento.

Quando assistimos a Modelo de Pickman, escrito por H.P. Lovecraft e dirigido por Keith Thomas, o personagem principal, Will (Ben Barnes) começa uma busca descontrolada no mercado da pintura clássica em telas. E, atrelado a essa busca, que foi conduzida por uma influência monstruosa e enigmática, ele não percebe que a sua família, seu casamento, ia se desfazendo, virando apenas uma lembrança que nem mesmo uma pintura em tela sera capaz de eternizar aquela relação matrimonial.

Por fim, percebemos que O Gabinete de Curiosidades de Guillermo del Toro coloca os monstros frente a frente de cada um de nós, afim de que possamos encarar a realidade que nos rodeia, encarar nossas decisões, assumir nossas imperfeições e cuidar com mais afinco das relações que vamos construindo no nosso dia a dia. A obra vai mostrando o quanto vamos alimentando esses monstros entre nós, em nossas vidas, casas, famílias, ou até mesmo dentro de nós, e nos esquecemos de acender a chama, a luz daquilo que, de fato, nos alimenta, e nos torna seres humanos mais seguros e felizes: o amor e a amizade.





Por Dione Afonso   | Jornalista pela PUC Minas

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