15 Feb
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Criado pela Companhia de Comédia Os Melhores do Mundo, a peça teatral Hermanoteu na Terra de Godah virou sucesso absoluto na internet quando a peça se tornou fenômeno no YouTube. Criada em 1995, a narrativa com piadas muito bem apuradas, afiadas, sem apelar ao humor negro, mas trazendo muita proximidade com seu público e com os fãs dos Melhores da Comédia, as risadas foram garantidas. Esse é mais um fenômeno que sai dos palcos do teatro e invade as grandes telas do cinema, amplificando ainda mais o fenômeno social que é o humor no Brasil. É um dos melhores humores do mundo, o do brasileiro. Paulo Gustavo com sua irreverência, resistência e seus diversos personagens; Chico Anysio que viveu para a comédia, Renato Aragão, Dedé Santana com a trupe dos Trapalhões, Samantha Schmutz, Tatá Werneck e a grande levada dos stand up comedys que só vem reafirmando o que essa arte é capaz de nos proporcionar. 

Contendo uma sátira leve aos bons costumes, o filme que é produzido em parceria com a Warner Bros. Studios dirigido por Homero Olivetto, a narrativa explora com maestria, desde os memes, até as situações que viralizam entre as nossas conversar triviais do dia a dia. Hermanoteu é um personagem vivido pelo Ricardo Pipo e um grande amigo de Isaac, Welder Rodrigues. Sim, é esse Isaac mesmo que você está pensando aí. O tal filho da promessa que Deus prometeu a Abraão. A história torna-se ainda mais hilária quando esse Hermanoteu, da Pentescopeia, filho de Ooloneia, irmão de Micalateia. Micalateia? Torna-se o décimo quarto discípulo do Grupo dos Doze. 


Hermanoteu da terra de Godah e sua condição humana 

É interessante, quando olhamos com mais criticidade para a personalidade de Hermanoteu. Aparentemente um homem jovem, próximo à fase adulta, que não se resolveu, amadureceu e não se encaixou em nenhum sistema, seja numa profissão, ou numa relação familiar. Sem namorada, ou sem qualquer outro interesse Hermanoteu é o retrato claro de um jovem-adulto que ainda quer curtir a vida, nada de emprego formal e nem de se amarrar numa grande aventura amorosa. Com isso, já temos um belo escopo do que essa história pode render. 

A aventura narrada pelos humoristas da comédia apresenta um chamado da divindade altíssima que põe sobre os ombros do protagonista uma missão de salvar um certo povo oprimido. Em sua jornada, o típico encontro com o personagem do mal, Satanás, com suas tentações, a história da libertação do povo do Egito e a travessia do Mar Vermelho... calma, se você é entendido da linha histórica bíblica, você deve estar confuso mesmo, mas na terra de Godah, essa linha não é levada em conta. Mas, a tentação dirigida ao homem não precisa ser exclusiva ao Filho do Homem, qualquer ser humano pode ser tentado quando seus desejos se tornam mais fortes que sua ascese, não é mesmo? 

Mais do que representar uma pessoa atual e relevante, Hermanoteu é mais uma caricatura satirizada do que a sociedade e seus sistemas, sobretudo, religiosos, têm oferecido a nós atualmente. A figura papal que é a autoridade máxima da Igreja Católica se apresenta como aquele que ama e acolhe a todos, inclusive o nome de Hermanoteu em seu novo pontificado, mesmo tendo ouvido do padre bibliotecário, interpretado por Marcos Caruso, de que a Igreja e seu povo jamais aceitaria e daria credibilidade a um homem com a descendência de Hermanoteu: “alguém filho de Micalateia...”.   


“Ave, César” e as figuras políticas 

Paulo Gustavo, durante o seu pouco tempo de vida, e sua intensidade artística sempre falou que “rir é um ato de resistência”. Welder Rodrigues, em entrevista, afirmou que, atualmente, “pôr um filme na praça, aqui no Brasil, é um ato de heroísmo”. Desde a figura do cobrador de impostos e da monopolização de Roma sobre os cidadãos, até a figura exagerada e controladora de César, o Imperador, Hermanoteu na terra de Godah não deixou de fazer seu manifesto político. O humor revoluciona. 

Mesmo que beira à gargalhada as cenas do Império Romano, não podemos deixar de perceber ali a crítica social, até porque, para que a peça fosse transposta para o cinema, foi preciso a construção de uma jornada, na qual um herói precisava cumprir com uma missão a ele confiada. A caracterização dos gladiadores, que lutam para entreter a corte também se apresenta como uma crítica à virilidade do mais forte e mais poderoso que esmaga quem é pequeno e se torna insignificante para a sociedade. 

Por fim, a obra cômica é uma sátira atual e relevante ao contexto que vivemos, no qual uma pandemia tenta nos reprimir, obriga-nos a cumprir com normas que nunca imaginaríamos que fôssemos cumprir e num contexto econômico e político que mais massacra que nos ajuda a sobreviver. Nesse real cenário, a “terra de Godah” desperta-se como a Terra Prometida, no qual o símbolo aqui é o sinal de esperança e de que vamos, um dia, vencer a pandemia e nos recuperar afim de voltar a mostrar nossas mais calorosas risadas. 


O humor pelo humor não edifica 

Há quem diga que o longa dos cinemas se distancia do material original dos teatros. Infelizmente isso é perceptível, uma vez que toda a linguagem cinematográfica precisa de uma forte manobra para adaptar o roteiro que há 27 anos funcionou nos palcos do teatro. A montagem das cenas que segue a jornada de Hermanoteu é condizente e faz sentido, mas o roteiro poderia ter sido ainda mais provocante. Ouvimos referências até a Vingadores, por exemplo, os heróis da Marvel, mas, a risada não foi garantida nesse sentido. Mas, rir por rir, não é muito construtivo, mesmo quando a gente dá o play naquelas ocasiões em que você só quer curtir o momento. Ainda há um objetivo concreto essencial. 

O longa-metragem ganhou um pouco mais de drama, por conta da narrativa escolhida, o que não diminuiu a riqueza do produto final. O roteirista, Jovane Nunes afirmou que adaptar uma história que já existe não é tarefa fácil. É muito mais fácil construir uma história do zero do que você ter que adaptar uma que já existe, porque a linguagem muda completamente. “O teatro é interpessoal, por isso tem muito diálogo. Já no cinema, você vê tudo”, afirma. 

A peça teatral da Cia. Os Melhores do Mundo já está em cartaz nos teatros há quase 30 anos, desde sua criação. Com participação especial de Jonas Bloch e Marcos Caruso e dos protagonistas dos “melhores do mundo”, Ricardo Pipo, Adriana Nunes, Jovane Nunes, Victor Leal, Adriano Siri e Welder Rodrigues. Figurino impecável de Bia Salgado e fotografia de Dudu Miranda. Disponível nos cinemas e também no streaming da Tele Cine.




Por Dione Afonso  |  PUC Minas

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