São tantas as opiniões apimentadas a respeito do filme Emilia Pérez que o fato merece de nós uma investigação mais profunda pra entender porque ele é tão odiado, sobretudo pelos latino-americanos. Vamos começar: Jacques Audiard é o cineasta francês que dirigiu o filme e, que, também assina o roteiro. O filme é representante da França na temporada de premiações, contudo, ele narra uma história que tem palco no México, mas as filmagens acontecem numa ilha francesa. O corpo de atores? Norte-americanos, salvando apenas Adriana Paz, a única mexicana e que desenvolve um papel de coadjuvante. Calma que ainda pode piorar: o tema social do índice de desaparecidos no México atinge marcas assustadoras. São mais de 100 mil pessoas; em 2022 uma onda de mulheres desaparecidas ultrapassou a marca dos 6 mil; em 2024 completou-se 10 anos do caso do desaparecimento de 43 jovens estudantes tornando público um esquema de corrupção e violência políticas que até hoje é uma ferida que sangra entre os mexicanos. Tudo isso precisa ser levado em conta, já que a narrativa central do filme de Audiard toca nessa ferida... mas, ao invés de cura-la, machuca ainda mais.
Karla Sofía Gascón, vencedora no Festival de Cannes por Melhor Atriz, interpreta Emilia Perez, um ex-traficante, chefe da grande máfia que realiza o sonho de passar por uma cirurgia de mudança de sexo e viver a vida que sempre quis. Essa transformação fez com que um passado com filhos, trabalho, ficasse para trás. A protagonista vivida por Zoe Saldana, a advogada Rita Mora é quem ajuda Emilia neste processo. Selena Gomez, a ex-esposa do ex-traficante, Jessi Del Monte tem um papel secundário e quase esquecível nesta trama. O filme é um musical que conta a história de Rita Mora quando aceita o contrato bilionário de Emilia Perez, prometendo sigilo e serviço de primeiro mundo. Rita sempre se destacou pela eficácia de seu serviço nos tribunais, mas nunca ficou debaixo dos holofotes. A proposta de Emilia a ascendeu a uma nova perspectiva de vida.
Não é o intuito aqui cair na tentação deste ser mais um artigo que mancha a imagem do filme. A internet já está cheio deles. Contudo, não dá pra exaltar uma obra que apresenta falhas irreparáveis e narrativas que não encontram ancora numa realidade verídica. O filme é um musical, e precisa ser tratado como tal, tanto é que a Categoria em que foi indicado chama-se Melhor Filme de Comédia ou Musical. Saldana interpreta muito bem sua personagem. Tem boa voz, atua e coreografa com precisão os números musicais. O musical de abertura em que ela se encontra numa encruzilhada judicial é muito bem construído e chama a nossa atenção. Este primeiro ato do filme, na verdade, funciona bem e nos conquista para acompanhar a história. As coisas começam a perder o foco quando Rita Mora conhece Manitas, a futura Emilia Pérez de Gascón.
A atuação de Gascón, inicialmente é tímida e um pouco presa. Mas ela vai encontrando equilíbrio e presença na medida que sua personagem vai se desenvolvendo. É bonito a relação que o roteiro propõe entre ela e Epifanía, personagem de Paz. Ali encontramos um alívio dentro de um roteiro que começa a se perder e não encontra o ponto de partida de novo. Os diálogos no filme, quando não são cantados e coreografados não se encaixam, perdem-se em pontos cruciais da narrativa. Com isso, as músicas ficam soltas e a história não se encaixa.
O pano de fundo social, que é o caso de um ex-traficante e chefe da máfia deixar essa vida para trás e se tornar uma pessoa redimida e que acaba fundando uma ONG para encontrar pessoas desaparecidas não é vista com bons olhos. Não pela atitude benfazeja, mas pelo fato de que essa história não se encaixa na realidade cruel do México. Ou seja, se tudo fosse tão simples assim na realidade dura do dia a dia, de mães que todos os dias espalham cartazes com o rosto de seus filhos desaparecidos; de esposas procurando por seus maridos; de filhos a procura dos pais; de avós a procura de suas famílias que há anos sumiram do mapa... Audiard, por ser um olhar de fora, pecou quando não se precaveu em aprofundar um pouco mais esta realidade e, talvez, o que se chama de sacrifício de Emilia Pérez – não sei se pode ser chamado de sacrifício – teria feito mais sentido no último ato do filme.
Uma personagem que não entra na história. Ninguém vê, ninguém se importa, sua presença acaba se tornando irrelevante. Uma jovem mãe de dois filhos de um ex-traficante que “morreu”. Deixando-a milionária, pôde ter a vida que escolhesse ter. A atuação de Gomez é a que mais levou bombardeio dos críticos. De um lado, achamos isto desnecessário pela irrelevância de sua personagem. Gomez interpreta bem, é uma boa artista, e fez de Jessi uma jovem que cabia no filme. Ela não seria mais do que nos foi apresentado. Claro, se o roteiro tivesse o interesse, poderia ter elevado Jessi Del Monte, com todo o acesso financeiro que ela tinha, de reconstruiu sua vida no México com outros princípios, mas a história não teve este intuito. Portanto, a Jessi de Selena Gomez é esta: esquecível, fútil, rica, jovem, sem consciência social de fraternidade e sororidade.
Emilia Pérez, ainda conquistou o prêmio de Melhor Filme Internacional no Globo de Ouro. Talvez aqui há uma grande revolta nossa, dos brasileiros, quando o longa francês – que não é francês – desbancou o trabalho do cineasta Walter Salles por Ainda Estou Aqui. Audiard ainda venceu A Semente da Figueira Sagrada, representante da Alemanha; Tudo que Imaginamos como Luz, da Índia; A Garota da Agulha, trazendo a Dinamarca para a disputa e Vermiglio, da Itália. Não classificamos Emilia Pérez como um trabalho ruim e indigno de nossa atenção, aliás, ele tem recebido ganhado bastante holofote ultimamente. É uma obra que precisa – mesmo se não merecer – ganhar nossa atenção para que saibamos refletir mais a fundo quando estamos dispostos a olhar para outras realidades, outras culturas, outros contextos que desejamos entender e conhecer.
Por Dione Afonso | Jornalista