30 Jul
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Fundada em 1946, a Cinemateca de São Paulo guarda registros de filmes  e imagens raras do audiovisual do Brasil. Imagens filmadas durante as incursões do Exército Brasileiro na 2ª Guerra Mundial, por exemplo, e clássicos do Cinema Novo. Documentários do Brasil do começo do século 20, coleção de imagens raras da TV Tupi, primeira emissora de TV do país, inaugurada em 1950. Há 1 milhão de documentos relacionados à área do audiovisual, 245 mil rolos de filmes e 30 mil títulos de cinema, entre obras de ficção, documentários, cinejornais, filmes publicitários e registros familiares de personalidades históricas. O acervo preservado na Cinemateca é o maior do Brasil e o quinto maior da América Latina sobre o audiovisual. 

Toda a nossa história é contada pelos galpões da Cinemateca e também pelas salas do Museu Nacional do Rio de Janeiro que pegou fogo em setembro de 2018. Também faz parte da nossa memória, as conquistas do campo da ciência, pesquisas, descobertas, vitórias de milhares de brasileiros registrados na plataforma Lattes do CNPQ – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico fundado em 1951. Há uma semana, o Banco de Dados do CNPQ queimou. Não há backup de nada. Nunca foi feito. 


A negligência do Poder Público 

O que estamos assistindo não são acidentes que nos pegaram de surpresa. Não faz parte da ordem natural das coisas. Não é um acidente, isso tudo faz parte de um projeto que está em andamento. Um projeto que consiste em deletar de nossa memória tudo o que construímos. Apagar de nós nossas raízes, nossa memória, de onde viemos e o que somos. Destruir a nossa história, nossa grande história que um dia narramos... 

Desde 2019, o governo cortou as verbas que serviam para manter os prédios da Cinemateca. Funcionários demitidos, equipe de proteção contra incêndio, demitidos. Os programas que sustentavam e mantinham a manutenção de salas que protegiam trabalhos raros do audiovisual foram desabilitados. Em 2020 a Cinemateca foi fechada por falta de verba e as chaves simplesmente se “perderam”. Uma carta enviada ao Presidente Jair Bolsonaro foi enviada pedindo que o mesmo se atentasse aos riscos que a Cinemateca corria. Não houve diálogo. A Cinemateca estava de portas fechadas. Abandonada. Nossa história foi violentada e deixada à própria sorte. 

Não estamos assistindo a uma tragédia nacional. Isso é um crime. Um crime humano e social. Não foi por falta de aviso que isso estava prestes a acontecer. A negligência que assistimos faz parte de um projeto em andamento que não viabiliza políticas públicas para a arte, a cultura e a história. Esse projeto é um projeto de morte e que massacra aquele que se atreve a erguer sua voz e sua arte. Infelizmente o fogo está engolindo nossa voz, nossa alma e nossa história. Estão queimando nossa cultura e um povo sem cultura é um povo controlado como marionetes nas mãos de um opressor. 


Um Brasil dividido? 

No cenário político, o que estamos assistindo não é um país que se encontra dividido, mas é um país esquartejado. Não há dois polos. Há multifaces em busca de um ideal pessoal e egocêntrico. Há também egocentrismo no sistema de comunicação, nas mídias, nas redes sociais, na Internet. Esse projeto de governo que veta verbas para a cultura, que nega recursos financeiros para a saúde, que recusa a existência de uma pandemia e que descredibiliza o trabalho de cientistas é o que nos (des)assiste hoje. É o que colocou fogo no Museu Nacional; o que queimou o HD do CNPQ, o que acendeu o pavio na Cinemateca; o que está queimando a Amazônia e o que está enterrando mais de meio milhão de vidas que não tiveram a chance de sobreviver a uma pandemia sob um vírus mortal. 

Sim. Estamos esquartejados. E essa violência já ultrapassou os limites do nosso corpo, nossa memória está virando cinzas sob o vento do leste. Nossa história se carboniza em meio segundo de chamas que destroem tudo o que vivemos e construímos. Não querem nos ver progredindo, crescendo, descobrindo, conquistando conhecimento e saber. Só nos querem vivendo uma vida pacata sob um regimento autoritário, ditatorial. Querem que nos tornemos marionetes e façamos apenas aquilo que “o mestre aprovar”. 

Nem tudo está perdido. Recordamos da fala do cineasta Kleber Mendonça Filho, que dirigiu Bacurau, no Festival de Cannes deste ano: “A Cinemateca Brasileira está fechada há mais de um ano. 90 mil títulos, 230 mil rolos de filmes e fitas televisivas, todos os técnicos e especialistas foram demitidos e essa é uma clara demonstração do desprezo pela cultura e pelo cinema. E eu acho que devo mencionar isso porque estamos no Festival de Cannes e todos amamos o cinema aqui”, disse, em discurso que rodou o mundo e tem sido mencionado nas redes sociais nesta quinta-feira após o incêndio. 


Em meio a disputas e chantagens... um culpado! 

“Histórias de vidas inteiras. Registros apagados. Ou melhor, queimados. O que aconteceu com a Cinemateca não foi um acidente, foi um projeto contra a arte e contra o trabalho de quem teima em sonhar e lutar pela beleza do cinema com amor e afeto”, diz a atriz Paolla Oliveira. “A Cinemateca está pegando fogo. E nós estamos queimando juntos”, postou a atriz Bruna Marquezine. “O fogo devastador... Nem toda a lágrima do mundo apaga. Precisamos de um mar”, lamentou a atriz Carolina Dieckmann. O youtuber Felipe Neto tuitou: “é um incêndio causado pela inoperância e vagabundagem do Governo... em 12 de abril os trabalhadores da Cinemateca (pessoas capacitadas e com experiência) avisaram que iria pegar fogo”. O ator Rodrigo Santoro também fez coro à manifestação nas Redes Sociais, “o lamentável incêndio na Cinemateca apaga um pouco do que fomos. E o que seremos sem história? O que mais vamos precisar perder até nos darmos conta da importância da valorização da nossa memória e da nossa cultura?” 

Sem trabalhadores não se preservam acervos. Confira o Manifesto dos trabalhadores da Cinemateca Brasileira datada de 12 de abril de 2021: 

F/Reprodução: Trabalhadores da Cinemateca Brasileira via twitter (@trabalhadorescb)


O que mais vamos precisar perder? Quando vamos apontar o dedo com coragem para o culpado por destruir nossa história? Ou vamos esperar que esse dedo aponte para nós? Quem se cala é conivente com quem é culpado! Quando é que vamos parar com as disputas egoístas e as chantagens descabíveis e olhar para o global e defender o país que nós ajudamos a construir? O desprezo pela arte, pela memória, pela cultura é desumano e tirará de nós a nossa humanidade, se não agirmos logo!




Por Dione Afonso

Jornalismo PUC Minas

Foto de capa: Reprodução/Folha SP

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