29 Sep
29Sep

Ambientada 20 anos depois dos acontecimentos do filme de Fernando Meirelles e Kátia Lund, série derivada escancara ainda mais as lutas diárias de quem sobrevive nas favelas. Lançado em 2002, o filme Cidade de Deus retratou a jornada do adolescente Buscapé (Alexandre Rodrigues), um menino sensível e sonhador. Morador da CDD – Cidade de Deus – favela carioca conhecida como um dos lugares mais violentos do Rio, ele vive com o medo de se tornar mais um bandido violento e capaz de tirar vidas de inocentes. A nova série de Aly Muritiba, acompanha Buscapé, agora, assumindo sua identidade, Wilson, que se apaixonou pela fotografia e que ganha a vida registrando cada episódio de violência e morte dentro da favela. 

A maravilhosa Roberta Rodrigues retorna como Berenice. Mulher batalhadora, líder comunitária e que não abaixa pra ninguém, sua personagem demonstra um crescimento grandioso nos 6 episódios desta primeira temporada. Andreia Horta é Jerusa e parceira de Bradock (Thiago Martins). Ainda temos Marcos Palmeira como Curió, que, atualmente desenvolve o papel de dono da comunidade através do tráfico e “segurança” local. A trama tem uma narrativa na voz de Buscapé, ou seja, estamos assistindo tudo e cada detalhe de seu ponto de vista e de suas experiências. Muritiba também tem o cuidado em nos distanciar da narrativa de vez em quando para nos dar o panorama geral de tudo o que acontece ou que pode acontecer entre uma casa e outra. Vemos o filme sendo não só atualizado, mas também homenageado, de certa forma, até porque, “a luta não para”. 


Bons conflitos ancorados em roteiro primoroso 

A série nacional tem pés muito bem fincados no chão e sabe exatamente onde quer chegar e não faz rodeios quanto a isso. Renata Di Carmo, uma das roteiristas apresenta um ótimo trabalho de roteiro. Muritiba não titubeia em nenhum momento e estabelece diálogos muito bem construídos. O conflito geral e que fica em primeiro plano é da turma de Bradock, recém saído da prisão, criado por Curió. Jerusa (Andrea Horta) é aquela personagem que entra na trama de escanteio, silenciosa, mas que vai tecendo uma trama escondida até dar seu “xeque-mate” final. Em segundo plano, outros conflitos mais pessoais e que não deixam de ser intensos vão alimentando a história. Um deles é a de Berenice e seu atual marido, PQD (Demétrio Nascimento). Ela, que agora é líder comunitária e ele que é recém voltado do exército vivem, na atual guerra do morro uma situação decisória que fará PQD escolher entre a esposa e o crime. 

Outro conflito é entre o protagonista - e narrador off - Buscapé e sua filha Leka (Luellem de Castro), cantora de funk nos bailes de favela que protagonizou neste episódio um dos melhores diálogos quando coloca em crise a profissão de seu “pai ausente”. Atualmente Buscapé não consegue manter um relacionamento saudável e próximo com sua filha e a própria o julga por isso. A abertura da série teve seu sucesso garantido e foi muito inteligente em colocar a paixão pela fotografia em paridade com o difícil trabalho do jornalismo em noticiar, informar e veicular o que, de fato, acontece entre um beco e outro, entre uma guerra e outra, entre um tiro e outro. 

Buscapé, - ou Wilson - como ele insiste é um jovem apaixonado pela câmera, mas que precisa de uma reflexão mais profunda pelo o que está disposto a construir. Um grande salto positivo da série é que, por já termos o arcabouço do filme de 2002, aqui não precisamos de uma temporada inteira para estabelecer conflitos e nem apresentar personagens. Apesar de muitos, um único episódio já foi o bastante para nos dizer quem são e onde se encaixam na trama. 


Poder humano, força da mulher e viva a diversidade 

Claramente o terceiro e o quinto episódios estão no páreo pelo brilhantismo das atuações e a audácia e coragem de revelar conflitos e guerras. Enquanto que o 3ªº enaltece e engrandece a qualidade histórica dos conflitos, dramas e da força, o 5º amarra tudo o que construiu. Há uma representatividade política, humana e social para a força da mulher. Mulher preta, pobre e favelada que luta por seus direitos. Inevitavelmente Roberta Rodrigues torna-se a “dona” da série, e nós não hesitamos em nos esquecer de todo o resto e prestar atenção apenas na atuação desta mulher. 

Berenice já começou a temporada mostrando sua força. Líder comunitária, é destacada por ser a única moradora da CDD que não abaixa cabeça pra ninguém, nem para os que dizem mandar na “quebrada”. Berenice é aquela força jovem e guerreira que acaba adotando todo mundo e todos veem nela aquela mãe protetora e corajosa. Com o assassinato de Barbantinho (Edson Oliveira), Berenice encontra na política mais uma porta aberta para lutar pelos direitos de sua comunidade. A cena em que ela, vestida de branco e de braços abertos, enfrenta a força policial, à frente dos moradores é digna de uma pintura emoldurada nas nossas paredes. Há em Cidade de Deus: A Luta Não Para uma verdade a mais e uma realidade periférica que poucas produções televisivas investem em mostrar. 

Depois, ganhou a nossa atenção a jornalista – mas com identidade escondida – Lígia, vivida por Eli Ferreira. Antiga moradora da CDD, vivendo fora do país, resolveu voltar para pôr um ponto final numa injustiça do passado. O que Lígia não esperava é que este ponto final também pode estar se referindo à sua própria vida. O jogo político injusto e cruel não honra com a legislação do país e continua jogando em benefício próprio, satisfazendo os interesses maliciosos de cada um. Lígia chega de mansinho nos episódios anteriores, mas já despertando curiosidade e certa desconfiança dos mandantes da favela. Ela quer justiça e está, às escondidas e com a ajuda de Buscapé reunindo informações e provas afim de conseguir abrir uma CPI. A investigação de Lígia vai nos levar até Jerusa, a nossa espécie de vilã de toda esta trama. Virando a casada e jogando em dois times opostos, Jerusa dá a volta por cima, tira Bradock de campo e ela própria faz o tempo girar em torno de suas obsessões. 


Como será este futuro? 

Barbantinho, assassinado numa ação policial de invasão à CDD; Berenice, assume a candidatura de Barbantinho e vence as eleições, tornando-se a 9ª vereadora mais votada do Rio; Jerusa, tira Bradock de campo e joga pra escanteio o vereador Israel (Rafael Lozano); Buscapé é vítima de um tiroteio que pode ter tirado a vida de Lígia após publicarem matéria jornalística que revela os esquemas políticos corruptos... Agora, estamos diante de um futuro que pode estar brilhando certa esperança a todos nós. 

Cada esfera social está balanceada com este final de primeira temporada. Ainda há muito pra ser contado e ainda temos muitas expectativas sobre este futuro. CDD é um campo minado e isto gera sempre novas narrativas e possíveis viradas de interesse. No penúltimo episódio, quando assistimos a morte de Barbantinho, é impossível não nos tocarmos com o narrador-off: “A gente nunca vai saber quem que apertou o gatilho. Mas, aquela bala nunca foi perdida. Ela sempre encontra o mesmo alvo: o corpo dos pobres, dos pretos, dos favelados”. A violência nas comunidades periféricas infelizmente ainda é um mal comandado por grandes forças de ambos os lados. E a série ainda pode nos surpreender com uma nova leva de episódios.




Por Dione Afonso  |  Jornalista

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