27 Dec
27Dec

É de se reconhecer que adaptar uma obra que é um patrimônio cultural de um país e que marca toda uma geração não é uma tarefa fácil e nem simples de se concretizar. Cem Anos de Solidão foi escrita pelo jornalista colombiano Gabriel García Marquez em 1967. A obra é um dos clássicos latino-americanos mais vendidos até hoje. O romance narra a criação da fictícia Macondo, um povoado que se instaura no meio da mata e do nada constrói a vila em que a família Buendía consegue instaurar uma nova ordem humano-social. Carregada de conceitos da política e da religião, a história da família Buendía também nos faz questionar sobre a ética social e as relações que construímos sobre fraternidade e família. Marquez, mesmo se valendo da ficção, bebe profundamente da atual condição de seu país. 

Dividida em duas partes, cada uma com oito longos episódios, a adaptação encabeçada pela Netflix é gloriosa e digna de nosso apreço. A família Buendía, representada pelos patriarcas, o sr. José Arcadio Buendía (interpretado pelos atores Marco Antonio González e Diego Vásquez), fundador de Macondo e sua esposa, Úrsula Buendía (interpretada pelas atrizes Susana Morales e Marleyda Soto). O casal é a espinha dorsal de toda a série. Quem ganha seu destaque é um dos filhos Buendía, o Coronel Aureliano Buendía (em sua versão adulta, interpretado por Claudio Cataño. Os Buendía representam mais que o centro de toda a Macondo, mas são, de certa forma, um sinal de resistência e um gesto de esperança para a humanidade. 


Os acertos da adaptação 

Quem dirigiu a série foram Laura Mora e Alex García López, toda filmada em espanhol e na Colômbia. Os familiares de Gabriel García acompanharam o projeto. Mora, cineasta colombiana expressa o grande desafio em respeitar a linguagem literária ao mesmo tempo conferir credibilidade à linguagem do audiovisual. Trazer para as telas o que aquelas páginas narram é um ato grandioso de coragem e de presença. Cem Anos de Solidão, não é só uma literatura, mas é a história de uma vida, de um povo, de um país e de um continente. Mesmo tratando de elementos ficcionais, a vida de muita gente é refletida nas ações do jovem casal Buendía (González e Morales), que decidem sair da proteção dos pais e construírem seu próprio futuro. A sagacidade do ator González, ao transmitir um Arcádio mais sonhador, jovem, forte e cheio de planos, é essencial para que a versão envelhecida de seu personagem ganhe respaldo pela interpretação de Vásquez. 

Mora e López não tiveram medo em escancarar a temporalidade da obra. O que nas páginas pode parecer confuso e enigmático, nas telas é sublime e misterioso. Talvez, aí está o grande trunfo do tempo em Macondo e na colônia daquele povo que decidiu seguir o jovem casal em busca de um mar que nunca viram. A vila Macondo surge do nada, à beira de um grande rio. As ruas começam a surgir. A mata ao redor abraça os feitos do ser humanoe  aos poucos vai ganhando novas cores e novos sons. Úrsula e Arcádio tornam-se os líderes e a voz oficial de toda a Macondo e aos poucos o vilarejo vai crescendo. Novos filhos nascendo e novas famílias surgindo construindo suas casas. 

É notório como que a direção vai adicionando os elementos externos: a chegada de viajantes que apresentam o mistério da mágica e os poderes do ímã. Uma chegada que tira Arcádio de seu “mundinho” perfeito e o insere no universo da astrologia e astronomia. Das invenções e dos estudos. A chegada de um oficial do Governo que não encontra respaldo dos Buendía e rejeita a forma “animalesca” daquele povo viver. Nisso, insere-se o conceito da política, da corrupção e dos costumes de pessoas de tons diferente de pele que impregna nos hábitos do ethos local. Surgem o padre, a religião e a presença de uma Igreja no centro de Macondo. 


Força e Poder 

Se com Susana Morales, ganhamos a versão de uma Úrsula batalhadora, pés no chão e mãe protetora, com Marleyda Soto encontramos uma Úrsula marcada pela idade, mas valente e determinada a impor sua presença na Macondo e mostrar do que uma mulher forte e poderosa é capaz de fazer. Sempre preocupada com a família, com a casa e o alimento, Úrsula é mais que simplesmente a matriarca de Macondo, ela é a presença física de uma pessoa que não esmorece nem mesmo diante da dor de perder um filho. Quando Aureliano é preso e sentenciado à morte pelo governo, a cena em que Soto o visita na prisão é um hino à arte da TV. Sua dor, grito, choro e lamento diante da morte de José Arcádio (o filho) também é algo que ultrapassa os limites daquele lugar e do que nós também sentimos. Em Macondo não há espaço para a alienação e quem o tenta, é condenado à própria sorte. 

As atuações das mulheres de Macondo são dignas de nossa atenção e reflexão. Estamos diante de uma narrativa que sabe o que pretende transmitir. Cem Anos de Solidão não é uma obra de época, suas páginas retratam as eras que vivemos e seu eternizar nos coloca sempre em postura de reflexão e decisão. Os gestos políticos que dela emergem podem, e muito nos fazer repensar, sobretudo no que consideramos moral e ético diante de uma sociedade que insiste em pregar a paz, mas que realiza mais atos de guerra contra a humanidade. Esta primeira parte da minissérie soube muito bem estabelecer o clímax da obra de Marquez e dá um salto significativo para a segunda parte dos episódios. A conclusão de tudo, seja, talvez uma porta aberta a uma nova reflexão sobre o que estamos dispostos a fazer diante de uma sociedade politicamente doente e humanamente adormecida diante das realidades antissociais e corruptas que vivemos.




Por Dione Afonso  |  Jornalista

Comentários
* O e-mail não será publicado no site.