09 Feb
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“Você pode ser cancelado por algo que você disse em meio a uma multidão de completos estranhos se um deles tiver feito um vídeo, ou por uma piada que soou mal nas mídias sociais ou por algo que você disse ou fez há muito tempo atrás e sobre o qual há algum registro na internet. E você não precisa ser proeminente, famoso ou político para ser publicamente envergonhado e permanentemente marcado: tudo o que você precisa fazer é ter um dia particularmente ruim e as consequências podem durar enquanto o Google existir”.     

[Ross Douthat, colunista do The New York Times para o BBC].



  “Cultura do cancelamento” não é um termo muito antigo. A expressão tem alguns poucos anos de existência e ele nasceu num contexto de injustiça social e proteção ambiental. Trata-se de um mecanismo para amplificar a voz de pequenas comunidades e grupos que são excluídos, oprimidos, segregados e também de injustiças sociais contra pessoas e a ecologia. 

O ato tem sua realização quase que exclusivamente por vias de mídias digitais de transmissão e veiculação que vai desde programas de TV até as Redes Sociais. Estas são as principais propulsoras da cultura do cancelamento. Quando uma ação praticada revela uma postura errada, antiética, preconceituosa e que fere a moral e a dignidade humana ela é veiculada imediatamente em todas as plataformas digitais de relacionamentos como twitter, facebook, instagram, entre outros, com o cuidado em marcar empresas e grupos políticos diretamente envolvidos. 

Assim, tornando-se um manifesto de denúncia e de revolta, a publicação rapidamente viraliza na internet tornando-se notícia factual em sites maiores e ganhando a maior repercussão possível. Cancelamento é diferente de trollagem. “Trollar” é usar da má fé, da brincadeira e as vezes até do humor negro para repudiar alguém ou algum grupo. A trollagem não se preocupa muito com o fato verdadeiro, ela é mais uma zueira ciber-social. O cancelamento, por sua vez, é uma manifestação de repúdio e protesto contra ameaças aos direitos humanos e à dignidade da pessoa. 


O sucesso dos Realitys Shows

O sucesso dos realitys shows tem sido grande destaque na grade de programação tanto das TVs abertas e fechadas, quanto também como item de views nas plataformas digitais. Segundo a pesquisa do KANTAR Ibope Media publicada no início de fevereiro de 2021, os realitys Big Brother Brasil e A Fazenda na TV aberta ocupam o primeiro lugar em audiência. Segundo a pesquisa, eles representam 85,6% da audiência. Quando vamos para o streaming, destacam-se o De Férias com o Ex e o Soltos em Floripa que disputam audiência junto ás séries nas plataformas digitais. 

Em conversa com o Blog Cicatriz, a professor  da PUC Minas, Júnia Miranda, Doutora em Ciências Sociais e Mestre em Comunicação conversou com a gente a respeito desse sucesso que os realitys movimenta tanto na internet, quanto na indústria do entretenimento. Ela dia que “no ponto de vista da comunicação, são produtos de entretenimento de emissoras privadas que objetivam ter audiência, anunciantes e patrocinadores como forma de faturar e custear esses programas. Os reality shows que o Brasil conhece são formatos importados e adaptados aqui que se destacam pela audiência por anos com um volume expressivo de investimentos”. Júnia ainda destaca o sucesso que as últimas edições do BBB, MasterChef e A Fazenda tiveram e afirma que todos “estão no ambiente mercadológico em busca de audiência nessa concorrência”. 

Aprofundando mais o assunto, Júnia Miranda relembra da inspiração que movimenta esses realitys e retoma o termo “zoológico humano”. “Um reality show é um conceito um pouco inspirado no George Orwell. Aquela sensação de que estamos sendo vigiados o tempo todo e que alguém está nos assistindo! Ele [os realitys] já começa de uma forma perversa e acredito ser algo muito maléfico; um “zoológico humano” servindo de distração sendo observados por nós. Então, sua origem já apresenta uma perversão. Os integrantes são competidores por um prêmio em dinheiro e são submetidos a provas que exploram e testam até o último grau de resistência física, moral e psicológica, levando-os a se gladiarem. Aí, aqui eu me lembro das arenas de Roma onde homens e animais se gladiam até a morte”, afirma a professora estarrecida. 


BBB21 e a onda da Cultura do Cancelamento 

O Blog Cicatriz também foi atrás de um especialista para nos esclarecer sobre essa cultura do cancelamento que parece estar atrelada ao sucesso e repercussão do BBB21. O neuropsicólogo Emanuel Querino (UFMG) Mestre em Medicina Molecular nos esclarece essa questão levantando dois pontos importantes a respeito do reality em questão. Segundo Querino, temos que levar em conta dois fatores sobre o BBB. O primeiro é sobre a popularização e participação mais incitada por parte do público que, para ele, “as pessoas começaram a prestar mais atenção no programa quando ele se tornou uma espécie de viral nas Redes Sociais. Então, ao envolverem influencers e a produzir conteúdos mais de rede social, isso influenciou na sua popularização”. E, o segundo fator, para Querino é o fator chamado “fator manda”, e o psicólogo usa a imagem de uma manada de boi mesmo, em que um certo grupo que faz algo é incitado por outras pessoas que começam a copiar essa mesma ação feita pelo grupo e assim, “como se fosse uma manada de boi, vai um seguindo o outro”, afirma. 

Emanuel Querino, então, nos alerta a respeito das pautas sociais que são abordadas nesses programas que não são abordadas numa dosagem saudável, “começaram a falar demais de questões sociais de formas mais exageradas e que não foi bem aceita pelo público. Por um lado, soava muito falso e por outro, essas mesmas pessoas que defendiam tais pautas, tinham comportamentos condenáveis. E é exatamente essa hipocrisia que tem sido apontada. Portanto, as pessoas estão tendo essa aversão, porque têm uma tendência em defender quem é vítima e é injustiçado. Quando temos a soma de todos esses fatores, você tem muito do que é esse BBB21 e o que ele afeta em nós. Então, somado tudo isso, nós temos aquela sensação de criar vilões, criar as vítimas, porque é a forma narrativa de compreendermos o mundo”, esclarece Querino. 

No entanto, Querino termina sua fala nos alertando de que não é especificamente a fama do BBB21, seu sucesso e sua audiência que impulsiona a cultura do cancelamento. Ele afirma que esse “efeito manada” e a dificuldade de empatia e de acolhida ao que pensa diferente de nós, sobretudo nas Redes Sociais, somados, é que geram esse desconforto e o famoso ato de cancelar as outras pessoas. “O algoritmo vai mostrar pra mim informações nas quais eu concordo com elas. Efeito bolha social. Logo, pra mim é super normal achar que as pessoas têm que ter um ponto de vista porque todos ao meu redor são assim e as Redes Sociais só me mostram isso. Para mim é natural pensar que o mundo é daquela forma e, quando eu sou exposto a uma questão que vai contra ao que eu penso me deparo com um embate. Quando se cria essa visibilidade dentro de uma bolha e muitas das vezes uma pessoa faz algo que lhe vai contra a sua bolha, é normal você ter uma aversão a isso. E o que está acontecendo hoje é essa cultura do cancelamento. A pessoa saiu do ponto de praticar algo moralmente condenável ao ponto das pessoas discordarem”, conclui. 


Cultura do Cancelamento e a agressão psicológica 

Retomando o termo “zoológico humano” recordado pela professora Júnia, ela ainda alerta para o que nós vivenciamos “fora da casa”. Ou seja, as pautas sociais que são abordadas pelos participantes de um reality confinados numa casa não nascem lá dentro. Elas são reflexo do que vivemos aqui fora no nosso dia a dia. “Nós também, ao ocupar nosso lugar na sociedade, de certa forma, lutamos por esse espaço. Os discursos que o programa levanta são pautas sociais que se refletem aqui fora. Os problemas que vivemos aqui, são levados com os participantes. Pautas do machismo, da intolerância religiosa, do preconceito, ódio político, estão presentes nos conflitos daqueles que entram para um reality show”. Segundo Júnia, a “cultura do cancelamento faz com que aquilo que chamamos de lugar de fala tornar-se num lugar de falha”. E, com a pandemia, com as pessoas mais dentro de casa, acabam participando ainda mais, assistindo esses programas e discutindo sobre em suas redes sociais, popularizando-se com afirma Emanuel Querino. O assunto mais comentado nas Redes Sociais hoje são os realitys shows. Quatro dias antes do BBB21 iniciar (em 25 de janeiro de 2021), no Twitter ele foi citado 3 milhões de vezes. 

Ao ouvir o povo e os telespectadores nas Redes Sociais, sobretudo os que acompanham e gostam, Túlio Lima, estudante de jornalismo na PUC Minas, afirma que “essa cultura do cancelamento hoje virou moda”. Túlio afirma estar assustado em como que esses realitys refletem a nossa doença aqui fora. “Todo mundo erra. Mas erro de ninguém é motivo para tortura-lo psicologicamente, cancela-lo, como fizeram nessa edição do BBB. Isso é perigoso. É maldoso. É linchamento ao vivo, e isso é muito mais sério que cancelar alguém no twitter”. Aline Vidal, comerciante e dona de casa, diz também gostar de acompanhar os realitys shows, e ao falar do BBB ela afirma o quanto esses programas a ajudam “a reconhecer quem eu sou e me faz buscar ser uma pessoa melhor. Atitudes ruins praticadas por participantes e que se refletiram em minha vida. Então, tento melhorar meu jeito de ser, depois que vi o mal que isso pode fazer”. E, para complementar, Aline Vidal revela sua torcida pelo confinado Caio nessa edição do BBB21. 

Para concluir nossa matéria, deixamos ainda um complemento do psicólogo Emanuel Querino que ainda volta no assunto do quanto um cancelamento pode afetar a nossa formação pessoal e nossa personalidade. Querino alerta-nos para o nível de que uma mera discordância pode se tornar motivos para que eu seja demitido, afastado, excluído e até humilhado publicamente. “Com medo disso, com medo desse efeito manada, de um monte de gente me cancelarem uma vez, eu começo a ter receios de me expressar. Logo, isso cerceia a liberdade de expressão quando as pessoas mesmo estejam numa discussão natural. A cultura do cancelamento hoje é um grande problema democrático, porque muitas pessoas não falam sobre o que pensam, não discordam de um grupo maior, meramente por medo de que grupos irão cancela-los. Num grupo as pessoas começam a se comportar sendo, menos como elas são e mais como as outras irão aprova-las. Um comportamento destrutivo para a personalidade, pois ela não está agindo como ela é, mas como as pessoas querem que ela seja. E, a longo prazo, esse tipo de comportamento nunca funciona”. 



Por Dione Afonso Jornalismo PUC-Minas 

Por Christian Maia Jornalismo PUC-Minas

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