21 Jul
21Jul

A gente não pode errar. Não podemos ser magras demais e nem acima do peso. Não podemos nos apresentar desarrumadas, mas nem bonita demais porque desperta ciúmes e inveja. Não podemos nos atrasar e nem chegar adiantadas. Não podemos ser inteligentes demais, mas mulheres “burras” é uma ofensa social. Não podemos ter celulite, estrias, rugas, mas o exagero com cosméticos e produtos de beleza é criticado pela sociedade. Não podemos ter sonhos, desejos, lutar por direitos. Nascemos pra ser mães, donas de casa e se quisermos trabalhar, saiba que este direito não anulará os outros,  e no salto alto. Não podemos ter o luxo de dizer “não” e não podemos envelhecer... e parece que nem... morrer. 

Redigir esta crítica cinematográfica, talvez seja um dos desafios mais caros para a minha profissão. Não ocupo este lugar de fala, e acho que você, querido leitor já percebeu isso. Até porque, percebe-se que, involuntariamente, este texto jornalístico acaba de assumir uma postura nada convencional e “profissional”: a primeira pessoa em sua narrativa. Contudo, mesmo que isso indique uma opinião pessoal, o profissionalismo não deixará de deixar sua crítica e arguir a respeito do que estamos aqui, dispostos a discutir. 

Conquistando o posto de segundo maior lançamento cinematográfico da história, o filme Barbie está atrás apenas do lançamento de Vingadores: Ultimato (2019)É dirigido pela cineasta Greta Gerwig que, contou com a ajuda de seu parceiro, Noah Baumbach no roteiro. Gerwig é uma mulher norte-americana que contém um senso de feminilidade e de consciência crítica feminina muito bem apurado e respeitado pela comunidade do audiovisual. Foi indicada ao Oscar com seu filme de estreia Lady Bird: A Hora de Voar (2017). Já emplacou algumas iniciativas neste campo e trazer à lume uma história como a que estamos assistindo agora é um ato de coragem e de esperança ao cinema, às mulheres e à sociedade. 


A sagacidade de um roteiro rápido, mas de muitas camadas 

Baumbach e Gerwig, para fazer acontecer esse filme, assumiram, com ousadia, o que o símbolo de décadas é para o mundo (veja, não só para crianças): Barbie, a boneca, é um brinquedo! Assumindo essa característica, a história começa a ser traçada elencando situações sociais e do “mundo real” que sofreram impactos, bons ou ruins, no decorrer da história. Por exemplo, encontramos o motivo que esteve por trás da criação da boneca; o porquê que Barbie se tornou fenômeno mundial; o lugar da mulher na sociedade, apesar de Barbie ter sido criada por uma mulher, o filme não deixa de mostrar um patriarcado que domina as relações sociais; questões ambientais com a produção demasiada de plástico poluindo o planeta; consumismo e espírito capitalista, se não vende, tiramos de circulação; representatividade; crise existencial tanto da parte da mulher quanto do homem. 

Tudo isso sendo compilado em exatos 1 hora e 54 minutos. Um filme na medida certa, tanto no cronômetro, quanto nos debates que se põe a discutir. Com referências a Uma Aventura Lego (2014) e à saga Toy Story, a narrativa nos apresenta o mundo de Barbielândia e o “Mundo Real”. No primeiro, Barbies e Kens vivem em suas casas dos sonhos. Cenários (muito, muito, mas muito rosa) revisitam os produtos da Mattel (que também está envolvido na produção do longa) explorando a nostalgia e a saudade de quem viveu uma era influenciado pelas bonecas adultas. Quando a boneca Barbie de Margot Robbie começa a ter pensamentos estranhos a uma boneca, ela decide visitar o mundo real e, ao ter contatos com os humanos, ela conhece Gloria, interpretada por America Ferrera e sua filha, uma jovem que já superou a “fase Barbie”, e que é uma militante revoltada com discursos feministas e empoderada. 

Outro ponto que merece destaque é a narração de Helen Mirren que deu ao roteiro uma narrativa off que auxilia o espectador na grande jornada que está disposto a entrar. O roteiro deste casal de cineastas é ousado, mas não está além de seu tempo. Infelizmente, Gerwig e Baumbach esfregam (mais uma vez) na nossa cara que em pleno século XXI ainda vivemos numa sociedade em que há privilegiados e excluídas. Ainda somos homens machistas e que objetificam mulheres e caluniam e matam LGBTQIAP+. Por que será que líderes políticos de extrema Direita (até mulheres) tanto no Brasil, quanto nos Estados Unidos estão espalhando discursos sujos e nojentos sobre o filme Barbie na Internet afirmando que este “vai contra todos os valores humanos que constroem a base sólida para nossos filhos”


Ruth Handler e a Barbie Original 

Poucos sabem, mas A Mattel Creations foi fundada por uma mulher (ao lado de seu marido) em 1945. Especializada em brinquedos, Handler manteve-se na presidência da empresa por 30 anos. Inspirada em sua filha, Barbara Handler, a boneca Barbie surgiu em 1959 quando a mãe viu a filha brincando com pequenos desenhos de papel que simulavam amigos, pessoas, bonecas. Mas, nem tudo são flores! Barbie, foi construindo, no decorrer das décadas, uma ideia estereotipada de feminino. Depois veio a boneca Ken, que reforçou ainda mais o estereótipo de que o homem desejado, bonito e perfeito é branco, abdômen definido, loiro e sem defeitos. As bonecas Barbies também transmitiam a mensagem que ser mulher era semelhante que ter as aparências da boneca. 

Não demorou muito e em 1968, a Mattel lança a primeira boneca Barbie negra, numa tentativa de diversidade representativa. Essa diversidade não parou por aí: as bonecas incorporaram uma representação feminista no mundo de forma muito perspicaz: ser mulher não é só sinônimo de ser mãe, esposa e dona de casa. Não! A mulher pode ser o que ela quiser! Por isso, surgiram as Barbies médica, presidente, arquiteta, cozinheira, professora, construtora, motorista, empresária, enfim, ter uma boneca Barbie, poderia proporcionar às garotas poderem sonhar com um mundo diferente, um futuro diferente. E é nessa mensagem que o roteiro se encaixa: quando a Barbie estereotipada de Robbie visita o mundo real, ela descobre que ser uma boneca versátil não conferiu muita versatilidade às mulheres de verdade. Ainda estamos entre um grupo de pessoas privilegiados socialmente: os homens. 


Barbie, seu discurso e o poder da metalinguagem

Uma boneca falando sobre ser mulher; um brinquedo que explica o que é brincar; Barbies e Kens que tentam explicar que o amor não é dominação e que entre um homem e mulher não pode haver sentimento de dependência. Além da metalinguagem, ainda encontramos as referências cinematográficas que exploram a história de um cinema que sempre buscou superar discursos como 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968); O Show de Truman (1998) e, a incrível narrativa de Matrix (1999)quando a Barbie Estranha apresenta o sapatinho de salto e a sandália baixa referenciando as pílulas azul e vermelha: você quer a verdade ou prefere viver na ilusão? 

Não dá pra dizer que Barbie de Greta Gerwig é um “divisor de águas” para o cinema. Mas o filme é tudo isso e muito mais. Ele é simples, mas cheio de vida e de escolhas. Ele é sobre o que fazemos, o que escolhemos, o que sentimos e o que damos mais valor na nossa vida. Claro que o marketing da Mattel por trás de tudo isso é nítido. As bonecas entravam e saíam das prateleiras sempre colocando os lucros em primeiro lugar, e nunca a representatividade, como os slogans nos diziam. Preocupação ambiental? Nunca ouvimos falar que a empresa se preocupou com esse tema. Lutar pelos direitos da mulher? Qual mulher? Gerwig, não atoa escalou para o elenco do filme artistas como Issa Rae que faz a Barbie negra e Presidente; Ncuti Gatwa; Kingsley Ben-Adir, um Ken negro. 

As mulheres ainda gritam que “ser mulher hoje, em pleno século XXI” ainda é dolorido, pesado e desumano. Muitas ainda precisam conquistar suas Barbielândias e tentar sobreviver aos abusos de uma sociedade ainda masculinizada. Algumas conseguem sobreviver, mas dentro de seus “mundinhos cor-de-rosa”, desde que não interfiram no “mundo sério e real” dos homens. O filme Barbie não é anti-homem, ele é anti-machista que possui sua sexualidade fragilizada por não entender que ser homem e ser mulher é, acima de tudo, ser um humano capaz de lutar por um mundo de iguais em que tantas mulheres não precisem se refugiar em suas Barbielândias por não serem aceitas num mundo que se dizem ser normal.





Por Dione Afonso  |  Jornalista.

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