11 Nov
11Nov

No auge dos seus 80 anos de vida, Martin Scorsese me fez perguntar se ele ainda tem o que contribuir para a cultura do cinema e do audiovisual em geral. Infelizmente a sociedade capacitista e a cultura gerontofóbica nos faz pensar de forma errônea como neste caso. Quando Scorsese decidiu adaptar o livro-reportagem de 2017, escrito pelo jornalista norte-americano David Granns, “Killers of the Flower Moon: The Osage Murders and the Birth of the FBI”, o interesse em assistir à obra deste grande cineasta foi de 0 a 10 num piscar de olhos. O cineasta, mais uma vez divide o trabalho com Robert De Niro e Leonardo DiCaprio, abrilhantando o elenco com a atriz Lily Gladstone, que rouba a cena com seu silêncio sufocante e ameaçador. 

Assassinos da Lua das Flores, conta a história do povo indígena Osage, que, por volta das décadas de 1910, 1920 foram alojados nos arredores do Condado do Oklahoma. Contudo, as terras onde os Osage fizeram morada eram ricas em petróleo, uma das refinarias mais promissoras de todo o continente e, claro que a ganância do homem branco não tardou a atingir aquele povo. O filme, portanto, narra a série de assassinatos dos Osage e como a investigação do FBI, liderada por Edgar J. Hoover foi se desenrolando afim de denunciar os crimes que, mais tarde, resultaram na extinção de todo um povo originário. 


Quando sangue, dinheiro e ganância se juntam 

Gladstone interpreta a Osage Mollie Burkhart que, segundo William Hale (De Niro) é detentora de uma poderosa herança, caso seus familiares venham a falecer. Com a chegada do sobrinho de Hale, Ernest (DiCaprio), o tio, imediatamente trata de colocar o jovem homem branco, bonito e bem afeiçoado nos caminhos da linda e jovem Osage de pele avermelhada Mollie. Com esta sinopse, já dá pra se perceber a que caminhos esta narrativa irá nos levar. Uma onde de crimes, mortes misteriosas, começa a assombrar aquele povo que possui uma cultura religiosa muito forte e predominante. Os males presságios se manifestam, sobretudo na sabedoria dos antigos. A língua nativa também esteve em evidência e Scorsese trabalhou de forma muito respeitosa, olhando, deste os tons amarelos, pastéis e anêmicos daquele deserto até as cores vivas, vibrantes e fortes dos mantos, itens das vestes próprios do povo. 

Leonardo DiCaprio entrega uma atuação inocente e muito poderosa. Ao lado de Gladstone, este equilíbrio entre amor e ganância; lealdade e falsidade; medo e fé; poder e humildade, proporciona ao filme ótimas sensações quando o objetivo é nos colocar dentro de um fato real, mesmo que esteja muito longe de nós, no passado. Reviver o extermínio do povo Osage, através das lentes de Scorsese provoca em nós um compromisso, antes de qualquer coisa, com a verdade e, através disso, um compromisso com o humano, com os povos, com a cultura, com o diferente. Um diferente que não é inimigo, mas humano, como nós. 

De Niro está ameaçador, um homem branco ganancioso, de poucas palavras, calado, mas perigoso no olhar. Uma atuação digna de reconhecimento ao pôr medo até mesmo quem nunca se assustou. A ganância, na vida de uma pessoa, ela corrói o ser humano por dentro e só é possível vê-la escapar através dos olhos. Olhos profundos, em brilho, olhos que nos fuzilam e nos condenam a uma morte silenciosa e sem remorsos. Estes olhos são de Hale; um homem sem limites para conquistar o “ouro negro” do petróleo. Um homem branco que não vê vantagem um povo como os Osage tornarem-se uma potência econômica num país em que os homens brancos é que deveriam comandar tudo e todos. O papel do jornalismo investigativo, neste caso, teve que driblar com esta tal superioridade desumana afim de trazer à luz dos fatos quem tem humanidade e quem não tem. Por mais que o petróleo pertencesse aos Osage, o homem branco tinha o domínio de tudo: dominavam o comércio, a lei, os povos... 


O Jornalismo Investigativo e o desfecho 

Enquanto que na primeira hora do filme assistimos ao plano de Hale em aproximar Mollie e Ernest, e aí o desenvolvimento do romance dos dois e do casamento servem de ótimo contexto, assistimos na segunda metade do longa às investigações que se iniciam após várias mortes acontecerem, quase todas elas com familiares Burkhart. Mollie presencia o enterro de toda a sua família. Enviados de DC Washington, os policiais investigadores – que mais tarde passou a se chamar FBI – iniciam um processo de investigação muito lento e cheio de amarras. Hale, que já estava inserido na cultura local, inclusive falando a língua deles, tinha o domínio de tudo e aos poucos ia eliminando provas que o incriminam. O clímax que o filme constrói vai inserindo o espectador naquele ambiente hostil, mas que respira por justiça. 

Enquanto vemos uma Mollie frágil, doente e manipulada pela ambição de Hale e seus comparsas (inclusive seu marido), vemos a fragilidade do sistema investigativo. Na medida em que Mollie se recupera, Scorsese faz com que a investigação também se solidifique em testemunhos e provas reais e pertinentes e o processo investigativo recupera fôlego tal qual Mollie Burkhart também volta a respirar. Damos destaque ao papel de Brendan Fraser no julgamento final, como o advogado que representa Hale, Jesse Plemons como Tom White, o chefe de investigação e John Lithgow como o promotor de justiça. Ernest Burkhart percebe o mal que fez a tudo e a todos e narra a sua história que ficou atrelada ao plano de seu tio. O tribunal desempenhou importante papel em reconhecer que o povo Osage sofreu um extermínio comandado por um homem que estava cego por poder e dinheiro. 

O filme se encerra dando ao povo Osage descanso e conforto àqueles que sofreram um luto desmedido por conta da ganância. Mollie rompe com Ernest e ele e seu tio cumprem suas penas na prisão. No final, o roteiro narra que ela foi a última Osage a viver, morreu vítima de sua diabetes. A última que conservava a língua, a cultura e os costumes Osage. No auge de seus muito bem 80 anos, Martin Scorsese mostra o porquê que cinema precisa de ter coração e alma. Sem isso, a história narrada não ganha fundamento, humanidade e nem fé. Fazer cinema não é gravar, filmar, roteirizar, mas viver, amar, sentir, ser.





Por Dione Afonso  |  Jornalista

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