12 Nov
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Estreado no Festival de Cinema de Veneza, em maio de 2024, um dos grandes eventos que visa possíveis apostas para a próxima edição do Oscar, Ainda Estou Aqui é carregado de sentimentos viscerais e doídos. Estamos diante de um cineasta brasileiro, nascido no Rio de Janeiro que sempre produz com sobriedade e respeito á história. Nada de Salles exala falta de verdade e nada do que produz carece de falta de sensibilidade. Ser sensível diante de histórias de outrem, mesmo que nos afetam é uma qualidade que todos que trabalham com a arte deveriam ter como referencial. Desde que o filme ganhou estreia em Veneza, o trabalho vem ganhando repercussão midiática de forma estrondosa. Não menos, o trabalho, que reverencia um episódio cruel da história do Brasil movimentou a cúpula internacional com críticas positivas e elogios plausíveis. 

No filme, acompanhamos Eunice de Paiva (Fernanda Torres) que, durante a ditadura vê sua casa sendo invadida por homens armados e levam seu marido, ex-deputado Rubens Paiva (Selton Mello) para um “interrogatório”. Eunice o vê pela última vez neste dia e nunca mais obteve notícias do marido. Sozinha, mãe de 5 filhos, Eunice precisa encontrar forças e novas motivações para seguir com a vida e “engolir” a falta de humanidade e o crime cruel que sua família foi vítima. Um crime político, sem escrúpulos, movimentando por uma ação violenta e desprovida de direitos. Rubens Paiva foi cassado após o país sofrer o Golpe de 64 e, igual a ele, muitos outros brasileiros também desapareceram “misteriosamente” e ninguém mais os viram. 


Acertos da obra de Salles 

A escolha de roteiro de Salles, em concentrar toda a força da trama sobre os ombros da atuação de Fernanda Torres pode ter sido uma escolha corajosa e perigosa. Contudo, Torres é uma artista profissional que reconhece a força que carrega. Força feminina, força política, força humana, força profissional. A adaptação direta do livro de Marcelo Rubens Paiva também é um acerto para trazer o Brasil de volta aos holofotes das premiações da Sétima Arte. Mesmo o filme não chegando no Oscar – mas sonhando com isso – Ainda Estou Aqui torna-se o novo referencial do Cinema Brasileiro. Salles, há 25 anos nos presenteou com Central do Brasil (1998)estrelado e protagonizado por Fernanda Montenegro e que rendeu a ela uma indicação por sua Atuação na edição do Oscar daquele ano. Agora, a filha de Montenegro pode estar ocupando o mesmo lugar, mas, se lá, não chegar, o novo filme é o novo divisor de águas para a cultura do audiovisual nacional. 

Estamos diante de uma família, vítima da ditadura, que viveu no Leblon, numa bela casa, de frente para o mar. Os filhos de Eunice e Rubens tinham a areia da casa como quintal e lugar dos primeiros namoros, das amizades, dos futebóis, das brincadeiras... Rubens, apareceu em poucas cenas desfrutando da areia enquanto admirava o mar. Enquanto que Eunice, também em poucas cenas, apareceu desfrutando da cidade, mergulhada na água salgada. Deu pra entender o ponto de vista de cada um? Ele, admira, olha de fora; mas quem mergulha é ela. Eunice se joga, molha-se, mergulha, ela quer ir fundo... Paralelos que são mais que boas cenas captadas por Walter, mas é uma história contada, revelada a nós de diferentes pontos de vista. 

Outro acerto foi a decisão da narrativa de não cair no apelo político da época. Esta é uma ferida que ainda dói em muita gente. Não vai demorar muito e o Brasil estará recebendo uma geração que não viveu o Golpe, que não assistiu ao 11 de setembro, que não teve que sobreviver a uma Grande Guerra Mundial, que não perdeu família com as revoltas localizadas... Mas, ainda assim, feridas como essas sangram em nós. Sangram em cada brasileiro que tem a consciência histórica e humana do quanto uma pessoa pode se esforçar para praticar o mal. A dupla de roteiristas Murilo Hauser e Heitor Lorega foram felizes em não amenizar o contexto histórico ao mesmo tempo em que deixou a família Paiva protagonizar a própria história. 


Silêncio também é trilha sonora 

A saudade ainda bateu forte em nós quando vimos os discos de vinis... Caetano, Gil, Roberto Carlos... Nossa... Quanta saudade. A trilha sonora, mais brasileira que essa, impossível. Mas a falta da música, do som... Em muitas cenas, até o barulho do mar se ocultou... E aí, voltamos à Eunice, atormentada por dentro, atordoada. O silêncio esmagador, atrofiava sua esperança. É nítido percebermos em Eunice a consciência de que aquela mulher, muito cedo, já percebeu que seu marido não retornaria nunca mais. A pergunta mais forte de todo o filme acontece nas últimas cenas, logo depois de Eunice conseguir a Certidão de Óbito do marido: uma de suas filhas pergunta pro irmão, Marcelo: “quando você entendeu que ele não voltaria nunca mais?”. A filha, com seu whisky na mão, disse que assim que a mãe tomou a decisão de sair do Rio e vir para São Paulo. 

Fernanda Montenegro aparece no final representando uma Eunice já com as marcas da idade e da enfermidade. Diagnosticada com Alzheimer, essa Eunice está com o rosto cansado. Ela não acena, com esforço levanta os olhos, não responde à filha, não come... Uma cena forte! Ela não fala. Só olha. Ela não sorri. Ela é uma marca brasileira fiel ao retrato de uma mulher e de uma família que viveu o quanto podia viver. Amou o quanto podia amar. Sorriu o quanto quis e podia sorrir... O silêncio é interrompido pelo noticiário que citou os desaparecidos de anos atrás, ao que Eunice (de Montenegro) ergueu os olhos quando ouviu o nome Rubens de Paiva e a foto dele na TV. Ela, nada falou para fora, mas, gritou e chorou por dentro. 

E isso, no rosto de Eunice já estava claro há muito mais tempo, talvez ainda no primeiro ato do filme. Ou na virada de ação do primeiro pro segundo... Sua ida ao interrogatório, onde permaneceu por dias para entregar nomes dos “inimigos do governo” é uma mudança de chave para aquela mulher. O silêncio é rompido apenas pelo interrogatório e de volta pra casa, ele é interrompido pelo barulho do chuveiro. A água que cai para lavar aquele corpo imundo e aliviar uma alma que não sabe mais o que sentir, pensar, amar... Eunice, em São Paulo, forma-se em Direito. Não desistiu de conseguir justiça pela morte do marido. Tornou-se advogada de causas indígenas, tornando-se referência nacional na luta contra os grileiros. Ainda Estou Aqui reacende em nós a necessidade de não perder a nossa história. Uma história de família, de pessoas, de homens e mulheres que ainda não venceram as suas lutas e que precisam descansar em paz.




Por Dione Afonso  |  Jornalista

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