Não é a primeira vez que assistimos a uma tal “Ditadura da Beleza” que adoece seres humanos numa busca desenfreada pelo corpo perfeito, pelo sucesso, fama e glamour. Coralie Fargeat, uma cineasta francesa lançou no Festival de Cinema de Cannes deste ano sua obra A Substância. Trata-se de uma sátira com uma pitada de terror gore que eleva ao extremo um processo doentio e até sobre-humano no qual a beleza e o corpo perfeito precisa estar em alta custe o que custar. O filme de Fargeat já nos encanta logo de cara por seus enquadramentos; abuso de cores e uma fotografia impecável dirigida por Benjamin Kracun que penetra em nós na tentativa de nos inserir na história que está disposta a nos contar. Com uma leve crítica “escondida” às políticas hollywoodianas, com a cena de uma Estrela da Calçada da Fama, a mesma cena que abre o filme, ela o fecha depois de mais de duas horas de tensão, horror e desespero.
Protagonizado por Demi Moore e Margaret Qualley vivendo as versões de uma mesma pessoa, quando Elisabeth Sparkle [Moore], uma coach fitness de sucesso da TV se vê ameaçada em ser substituída por conta de sua idade, Sue [Qualley] é sua versão rejuvenescida. Tentada em experimentar uma droga sintetizada no mercado negro que gera uma nova versão de si mesma mais jovem, mais bela, mais forte, Sparkle e Sue vivem suas tentações a fim de não ficar de fora da TV e nem de serem ofuscadas. A busca pelo corpo ideal em A Substância vai além de simplesmente estar bonita, mas é a popularidade, a fama e o desejo de estar sempre visível na seara do sucesso. Sparkle não consegue lidar com a ideia de não estar mais à frente das câmeras e o pensamento de que seu corpo não mais agrada o público a leva a tomar atitudes drásticas.
A Substância ganha a classificação de ser um longa de terror. Aparência, autoestima, beleza, brilho e glamour, holofotes, aplausos, luzes, câmeras e ação é um pacote difícil demais de se digerir, mas uma vez que este banquete é apetecido é difícil de ficar sem. Moore tem uma atuação fora do comum e consegue nos entregar o retrato real da mulher que não suporta a ideia de ser desvalorizada por uma política etarista e por uma indústria da beleza efêmera e passageira. O etarismo tem se tornado pauta de grandes trabalhos no audiovisual, e Fargeat consegue trazer esta pauta para sua obra. A narrativa principal acompanha este processo doentio em que Sparkle dá lugar à Sue. Qualley, em sua atuação dá um tom de inocência à uma jovem mulher que descobre, aos poucos, o que quer, mas que não sabe o quanto isto vai lhe custar.
A virada de roteiro, que também é assinado pela cineasta, é pura arte! Sue abandona a sua inocência juvenil e se revela ambiciosa, dura, má e que só pensa nela mesma, em sua beleza, fama e sucesso. Por mais que a substância seja capaz de gerar uma versão melhor de si mesma, é inevitável que o desejo de autodependência e de que eu me dependo e não preciso de mais ninguém acaba gritando mais alto. Revezar a cada sete dias não pareceu ser uma ideia relevante e ser altruísta não estava nos planos de ambas personalidades.
Vulnerabilidade, insatisfação, desespero, medo, insegurança, baixa autoestima, permeiam do rosto de Moore como Sparkle: uma mulher que já apresenta os traços da idade e do cansaço depois de eras de trabalho árduo. Hiper sexualização, autoconfiança, brilho, vida, virilidade, fetichismo, juventude é o que se revela do rosto de Qualley, como Sue: uma jovem mulher que pode ter tudo o que sonhar e na hora que quiser. A forma de filmar o rosto de cada uma revela, para nós, a dualidade de nossa vida... ou não. Assim como a Estrela na Calçada da Fama que homenageia Sparkle trinca, fica suja, danificada e sem brilho, o mesmo pode acontecer com cada um de nós. Enquanto encaixamos nos ditos “padrões de beleza” e não apresentamos rachaduras, rugas, e outras cicatrizes, estamos sendo elogiados e lembrados. Basta adquirirmos algumas marcas da vida, e tudo pode mudar de rumo. Aquilo que mais nos humaniza, parece desumanizar as relações.
Por Dione Afonso | Jornalista