22 Nov
22Nov

A literatura criada por Suzanne Collins é ímpar. Seu universo próprio fictício e apocalíptico sobre um futuro ancorado em guerras, corrupção de poder, banhos de sangue e rebelião, de fato, faz parte de um grande jogo, um jogo voraz de sobrevivência e reconhecimento. Jogos Vorazes a saga, levanta questionamentos que pouco se encontram em nossas rodas de discussão e nos diálogos que empreendemos em nosso cotidiano. Primeiro, o tema da espetacularização da mídia de massa – e aqui, foco na televisiva – que sustenta seus pontos de audiência na grandiosidade do ato: “seu papel não é criar uma narrativa de sobreviventes, mas oferecer um espetáculo!”. Segundo, o prazer pelo mal que é empreendido a serviço do primeiro tema, o da espetacularização. Parece que o que dá audiência é a morte, a dor, o grande espetáculo da humanidade parece ser o de sua extinção: “é aquilo que ama que te destrói!”

A trilogia de Collins ganhou uma adaptação cinematográfica em quatro filmes. O último, lançado em 2015, culminou com o grande espetáculo que levou os Distritos desprezados pela Capital a libertar-se da tirania do vilão Coriolanus Snow. Sua crueldade e seu interesse em oferecer ao mundo um entretenimento baseado num jogo de sobrevivência entre crianças e adolescentes começou a gerar desagrados. O filme termina com o povo se vingando, resultando na morte de Snow. Agora, quase 10 anos depois, a autora resolve dar 10 passos atrás e nos apresentar como que esta personalidade vilanesca foi gestada, conduzida e consumada. Em Jogos Vorazes: A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes” assistimos a outro tipo de espetáculo: como se tornar um vilão! 


A vida é um espetáculo! 

Coriolanus Snow, em sua jovem versão é interpretado por Tom Blyth. Sua irmã, Tigres Snow, apresentada pela maravilhosa Hunter Schafer funciona como a telespectadora que patenteia o que está assistindo e confirma para nós, o público do outro lado da tela, que, de fato, nossa vida pode se tornar um grande espetáculo. Blyth e Schafer são como os dois lados de uma mesma moeda: enquanto ele não tem medo de empregar sua personalidade numa ambição futura, já visando os Jogos Vorazes como um negócio grandioso e de necessária existência; ela, sua irmã, se assusta quando vê os talentos de Snow sendo utilizados para construir uma personalidade sombria, má, perversa, e gananciosa. Quando Tigres, no último ato do filme, afirma que Coriolanus está com o mesmo olhar do pai, percebemos que o objetivo foi alcançado: “eu sou o que me tornei!”. 

Em teoria, os chamados “Jogos Vorazes” não passam de um divertimento sujo e perverso dos ricos, em detrimento da sociedade pobre, escrava e que nada tem pra comer. É horrível quando assistimos aos primeiros filmes da saga, e vemos que, enquanto na Capital, as pessoas se empanturram, vomitam e comem de novo, nos Distritos, seus moradores passam fome, trabalham horas a fio para sustentar os deleites da Capital. Os jogos é uma ferramenta de controle, medo e de poder. Quem os controla, controla as pessoas, controla ricos e pobres, controla os Distritos, controla o dinheiro, controla a tecnologia, controla a mídia, controla até mesmo a família. A trajetória de Tigres – que é pouco explorada – já aponta para esta situação: “quando Snow decidiu que eu não era mais bonita, ele não precisou mais de mim”. O vilão não se sacrifica pelo povo, sacrifica por si mesmo. Não é um sacrifício honesto, mas é um homicídio, um mal praticado até mesmo com o melhor amigo, afim de chegar onde deseja: no topo, e sozinho. 

Não faz parte do espetáculo, a salvação! Lucy Gray Baird está na história para mostrar isso. A personagem de Rachel Zegler torna-se a vencedora dos Jogos Vorazes, mas sua vitória não muda em nada, não quer dizer nada, não representa nada. O que é totalmente diferente com Katniss Everden, personagem de Jennifer Lawrence que vence os Jogos Vorazes nos primeiros filmes. Sua vitória muda o rumo da política da Capital; altera os costumes distritais; questiona o estilo de vida que separa pobres e ricos. Em A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes, a música é outra. O espetáculo não está em quem vence, mas em quem faz a história. Aqui, percebe-se que a história é de Coriolanus Snow, e nada mais importa. É ele o mentor, e é sobre o seu futuro que estamos interessados. 


Pássaros e Serpentes 

A metáfora aqui, – pelo menos no filme – não ficou muito clara. Talvez a leitura do livro de Collins esclareça melhor esse título. Viola Davis, que interpreta a grande vilã, Dra. Volummia Gaul é magistral ao apresentar sua sede de poder e investir na mente maliciosa de Snow. Seu tubo cheio de serpentes venenosas enche nossos olhos, ao revelar que o jogo (tanto o da arena, quanto o de sobreviver neste mundo real) não é tão fácil assim e qualquer picada pode te tirar de cena. Lucy Gray Baird é um respiro bastante significativo: “amar não está nas regras do jogo”. Seu pouco tempo de tela, suas músicas sem sentido, sua participação irrelevante nos Jogos só teve um propósito: se Snow escolhesse amá-la, ele não se tornaria o que vem a se tornar depois. Se ele a eliminasse, sua ascensão e reconhecimento entre os preferidos estariam confirmados. 

Infelizmente, a grande narrativa do longa, que mais uma vez ganha a direção de Francis Lawrence é cansativa. O trabalho é impecável: figurinos que não deixam a desejar – dignos de Oscar, inclusive –, trilha sonora que aposta numa nostalgia confortante; atuações impecáveis; fotografia excelente... O filme é bem feito, lindo. Contudo, as mais de duas horas são cansativas e pouco dinamizadas. A ascensão de Coriolanus Snow é assustadora e nos cativa, ao ponto de querermos ver o final de tudo isso, contudo, ela, ao mesmo tempo nos deixa impacientes, sedentos em ver o desfecho logo. 

É assustador como é perceptível que todo o resto, todas as pessoas, todos os personagens são esquecíveis: Tigres Snow; Dra. Volummia Gaul; Lucy Gray Baird; Tigres Snow; Cas Highbottom (personagem de Peter Dinklage); o melhor amigo, Sejanus Plinth (Josh Adries Rivera); todos aqueles que se aproximam de Coriolanus não ganha relevância porque o que importa saber é onde Snow vai chegar. Todos são esquecidos, porque queremos assistir a Snow. Onde está Coriolanus? Para onde ele vai? No que está pensando? É este o espetáculo! Sua maldade, vilania, seu desejo em elevar a espetacularização dos Jogos Vorazes e insistir, anualmente na Colheita que seleciona crianças de jovens dos Distritos para lutarem até a morte. Todo o resto não importa mais.





Por Dione Afonso  |  Jornalista

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