25 Mar
25Mar

“Onde trabalho o nosso medo é o abismo social que se abre, muitos de nossos alunos não fazem as atividades via Internet, ainda dependem do material e impresso e a esses não é chegada nenhuma aula, nenhuma explicação até porque o programa de TV disponibilizado pela Secretaria Estadual de Educação não pega em nosso município. A Internet patrocinada que o governo se orgulha em dizer que oferece aos usuários do aplicativo de estudo, simplesmente, não funciona. Infelizmente muitos de nossos alunos não conseguem o acesso às aulas”.  

[Jaqueline Emerick Dias, professora da Rede Pública de Ensino no município de Manhumirim-MG, exclusiva @cicatriz.blog]   



O celular despertou. São 5 da manhã.  

Olho para o lado, o marido já está na cozinha aprontando o café. Jogo o lençol para o lado e sigo pro banho. Visto meu uniforme da escola onde leciono há 10 anos, sento na mesa com meu marido para tomar o café da manhã e traçar os planos rotineiros do dia, que geralmente não mudam. Mas hoje as coisas foram diferentes. 

O relógio de parede bateu 7 horas, e, ao invés de cada um sair no seu carro, ele foi para o computador na sala e eu fui para o notebook na mesa que foi instalada no fim de semana num cantinho do quarto, próximo a uma porta que dá para a sacada de frente à rua. Não fomos à escola, nem eu, e nem meu marido. Não vimos os rostos dos nossos alunos. Uma pandemia alterou nossos planos – tanto escolares, quanto os sociais – e tivemos que nos reinventar. 

A sensação daquele dia, foi que o sol não tivesse nascido. 


Assim, começa a nossa história dessa semana. O Brasil decretou a pandemia por conta da alta contaminação por covid-19 em março de 2020. As escolas fecharam as portas no limiar da segunda quinzena daquele mês. Hoje, um ano depois, vemos as rachaduras que o sistema educacional apresenta diante desse quadro. 

O Blog Cicatriz, através de uma entrevista contendo perguntas compartilhadas, ouviu diversos professores em BH, na região metropolitana e de diversas cidades interioranas do estado de Minas Gerais. Nas regiões municipais da Zona Leste de Minas, por exemplo, relatam-se um problema ainda pior e maior: as zonas rurais carecem de conexão digital. Escolas que ainda operam sem laboratórios de computação. Alunos que não têm acesso a um computador ou a um celular disponível para a realização das atividades disciplinares que os professores enviam. E ainda: professores e outros profissionais da educação que mantém contato com alunos, também sofrem com a ausência de conhecimento no campo digital; amparo financeiro; ausência de planos municipais que os auxiliem no contato com os alunos e também grande descaso de muitas famílias que não conseguem acompanhar os filhos no ensino escolar. 

No início da pandemia, a esperança de que a pandemia iria durar alguns dias era o pensamento que se destacava entre a maioria dos professores como relata Déa Heringer que trabalha há 16 anos como professora no município de Manhumirim: “não estávamos preparados. E nossas escolas também estavam sem preparação. Ficamos esperando voltar e de repente nos colocaram para atender os alunos usando nossas redes sociais e aplicativos de conversa”. O CNE, Conselho Nacional de Educação, através da portaria nº 343 datada em 17 de março de 2020, dispôs sobre “a substituição das aulas presenciais por aulas em meio digitais no período de pandemia”. De forma a apoiar e legalizar a utilização do ensino remoto, em 28 de Abril de 2020 lançou parecer tornando “favorável a reorganização do calendário escolar e a possibilidade de cômputo de atividades não presenciais para fins de cumprimento da carga horária mínima anual, em razão da pandemia do COVID – 19”. O parecer foi homologado pelo Ministério da Educação, em 29 de maio de 2020. 

Portanto, houve uma atenção para a “legalização” do ensino remoto, mas, será que houve atenção a respeito de como isso iria chegar aos nossos alunos? 


O que a pandemia nos ensina: um novo formato, mas, para poucos usuários 

Embora o ensino remoto tenha sido regulamentado pelo MEC, ninguém estava preparado para utilizá-lo. Sistemas educacionais, escolas, professores, famílias e alunos tiveram que se adaptar rapidamente às aulas remotas. Uma adaptação que não teve apoio e investimento. “Nós somos vulneráveis”, afirma veemente Déa Heringer. Essa pandemia escancarou o quanto nós não pensamos no bem do outro. E Déa continua dizendo que “o país não estava pronto. Quem tem condições financeiras tem uma liberdade maior, pois além de ter aulas online, ainda pode ter aulas particulares. Mas os alunos com baixa renda não conseguem nem ter as aulas. A minha solução não deve ser aplicada, atendo aos alunos das 7 da manhã até às 22h, todos os dias. Não tivemos aulas online. Só atendemos pelos aplicativos”. Ou seja, além do regime remoto apresentar falhas no esquema educacional, o relato dessa professora ainda revela uma carga horária que vai além do estabelecido antes num regime presencial. 

Percebe-se também que em muitos casos, os pais tiveram que ser iniciados nessa cultura digital. Muitos são sabiam para que servia um e-mail, por exemplo. Com isso, Déa afirma que “muitos alunos desistirão de estudar, por não ter condições de ter aulas online e quando voltarmos, teremos muito trabalho para recuperar esse tempo”.  


Não se trata apenas de falhas, a pandemia abre nossos olhos para o novo 

A pandemia não é de tudo uma porta fechada. O momento atual revela um novo que é preciso abraçar e melhorar suas condições para um futuro que está perto de nós, e, talvez até mesmo já entre nós. O professor Osmar Roberto (Manhumirim-MG) diz que há nisso um olhar positivo: “Talvez impacto positivo. Com a pandemia ficou escancarado nossas defasagens. Se tiver um olhar de seriedade por parte de todos poderemos recomeçar do jeito certo. A escola não poderia mesmo continuar a ‘negar’ o uso de instrumentos tecnológicos aos alunos e professores”. E, essa visão ainda é afirmada por outros colegas de trabalho do município, Anildo Dias Júnior, afirma que mesmo “ninguém estando preparado, tivemos que aprender a lidar com novas tecnologias. Isso foi até positivo, pois muitos desconheciam todas estas ferramentas tecnológicas. O grande problema, na escola pública, foi o fato de grande parte dos alunos não terem um computador para trabalho. Muitos não têm celular com uma boa internet. Alguns alunos dependem exclusivamente de um material impresso pela escola”. Anildo concluiu ainda, “acredito que um ensino híbrido"’ onde uma nova escola surgirá além de seus muros. Além da interação do professor e aluno na sala de aula, esta acontecerá, também, remotamente, complementando todo o trabalho de ensino-aprendizagem”

A professora de matemática há 8 anos no município de Espera Feliz, Bianca Paixão, afirma que quando se fala de falta de investimento e de atenção, “na verdade, não vejo que há escassez de ferramentas, mas sim escassez de acesso e/ou saber usar as mesmas. Podemos perceber nesse quase um ano de ensino remoto que o acesso à internet e uso de aparelhos, como celulares e notebooks, por mais que estejam disseminados em nossa sociedade, ainda não são realidade para muitos. Quanto às ferramentas de ensino, já existem muitas e até gratuitas, mas faltam mais formação para professores e alunos de como usá-las, bem como tempo para adaptar a elas”

Por fim, Wellington Souza, do município vizinha, Caparaó, afirma que “é muito difícil avaliar um futuro para a educação, tendo em vista os inúmeros desafios que temos vivido, dia após dia, essa diferença de realidade, vai resultar nas notas das provas externas, nas avaliações da escola e no futuro profissional de muitos. Essa realidade de alunos que podem/querem e os que não podem/querem ou querem e não podem e assim por diante, agrava a nossa diferença social e nos leva a crer que no futuro essa diferença estará ainda mais acentuada”. 


#UmAnoDePandemia: e a pandemia do Ensino Público brasileiro 

Proximidade, escuta, busca de contatos, reconhecimento local, estudo de novas ferramentas, salas de aula em casa, slideshows, filmes, documentos compartilhados, drives... são expressões que passam a fazer parte do vocabulário das salas de aula, ou, das nossas casas transformadas em salas de aula. “O que tiro de aprendizado é que precisamos sempre nos reinventar e nos adaptar pois a realidade nos mostra que não existe um padrão”, afirma Jaqueline Emerick, professora há 10 anos em Manhumirim-MG. 

Jaqueline Emerick ainda afirma que a “Rede Pública de Ensino não sobreviverá a esse formato” remoto de ensino. As condições para tal são precárias e a maioria delas é pura propaganda governamental. A Secretaria de Ensino do Estado ainda disponibilizou um canal de TV por onde professores qualificados dão seguimento às aulas, no entanto, em municípios rurais e distantes da capital como esses, o sinal de TV não está acessível e os Apps disponibilizados apresentam instabilidade a todo instante. 

Mas, mesmo assim, não deixamos de exercer nossa profissão, carinhosamente “Tia Jaque”, deixa um recado carregado de otimismo e de força de vontade: Meus amores, são dias difíceis para todos, desafios constantes, mas tenha certeza que todo seu esforço valerá a pena o importante é não desistir, tia Jaque está aqui com vocês e por vocês”. 




“Vivenciamos situações muito adversas acerca do ensino em casa, mesmo que os pais com todo o seu entendimento e empenho e, não podemos de forma nenhuma tirar o mérito deles que foi por sua maioria brilhante, o ensino dentro da instituição escola, vai muito além de passar conteúdo, o famoso recreio nos intervalos e até mesmo as conversas paralelas, são subsídios importante da formação do indivíduo, junto ao processo de socialização e aprendizado, essa interação com o próximo fez muita diferença.” 

(Wellington de Souza Silveira, professor no município de Caparaó-MG)     



Por Christian Maia 

Por Dione Afonso   

Jornalismo PUC-Minas

Foto: Imagem de Tumisu por Pixabay.

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