“É realmente uma luta constante. Ainda estou nessa luta maldita. Como mulher, você tem que ser [sua própria aliada] o tempo todo, porque somos subestimadas, mal atendidas, desvalorizadas e mal pagas – você tem que ser sua própria aliada. Minha mãe me inspirou sobre isso desde quando eu era muito, muito jovem, porque é claro que ela passou por isso ainda mais severamente do que eu. Não, você tem que lutar contra isso. Você é desejável por causa do seu trabalho e é aí que está o seu valor. Está no seu talento. Não tem nada a ver com o seu gênero e não deixe ninguém fazer você se sentir assim. É realmente uma luta constante. Ainda estou nessa luta. Todas nós estamos”.
[Scarlett Johansson em entrevista para o The Independent, julho de 2021].
Viúva Negra é, de fato, o trabalho que marca definitivamente a abertura oficial da Fase 4 do Universo Cinematográfico da Marvel. Essa fase é contextualizada após o evento pós-Thanos que enfrenta a equipe do Vingadores, o acontecimento dos cinemas que reuniu o maior número de heróis numa mesma cena. Natasha Romanoff, a Viúva Negra (Scarlett Johansson) é uma das poucas mulheres que compõe a equipe dos super-heróis mais poderosos da terra. Com aparições durante dez anos em outros filmes da Marvel, celebrar seu filme solo é uma oportunidade de recontar sua própria história partindo de seus olhos.
Poder sentir novamente a nostalgia do cinema ao conferir diante das telonas um filme nesse contexto de pandemia (porém, vacinados) é uma experiência inexplicável. Um ano e seis meses depois, algumas salas reabrem. Cumprindo com os protocolos exigidos como combate à contaminação pela covid-19, o sentimento de orfandade desaparece, sobretudo quando o slogan da Marvel Studios ressurge na telona. É emocionante!
Dirigido pela Cate Shortland, Viúva Negra marca o primeiro trabalho da Marvel totalmente dirigido e protagonizado por mulheres. Infelizmente, o trabalho revela a dificuldade que os estúdios têm em valorizar esse feito. Não saber falar de mulher ou não deixar que elas falem sobre si mesmas já é algo que deveria ter sido superado. Nossas esperanças é que as pequenas produções das telinhas possam fortalecer isso nos cinemas. O longa da Viúva Negra chega tarde demais e desperdiça, mais uma vez o talento de uma Vingadora. (atenção, há spoilers a partir daqui).
Voltar ao passado de Romanoff foi algo super válido. Porém, custoso. De um lado, gostamos de ver o seu passado, como que a família de espiões russos conseguiu se manter durante tanto tempo, e, como se deu seu ingresso perverso e abusivo à Sala Vermelha. Mas, por outro lado, as coisas aconteceram rápido demais. Seria preciso pausar cena por cena para digerir o que a trama estava querendo nos transmitir. E isso comprometeu a experiência inicial.
Tal pressa não foi um ponto positivo para tocar num assunto que teria sido o ponto central da trama: o abuso feminino, o aborto, a exploração infantil, o tráfico de mulheres. A violência feminina em todos os aspectos possíveis. Infelizmente a Marvel não quis, ou não soube, tocar nesse tema com seriedade e denúncia. Romanoff deu vários indícios de que esse seria o tema central para se introduzir no MCU a Sala Vermelha e sua política maldosa. No entanto, seguir com o mais do mesmo era mais seguro e garantiria um resultado bom.
Por fim, o legado da Vingadora se mantém de pé, mesmo que na última cena do filme e nos pós-créditos onde Yelena Belova (Florence Pugh) visita o túmulo de Natasha e se depara com a Condessa Valentina Allegra de Fountaine (Louis-Dreyfus). Mesmo mantendo a fórmula Marvel de encaixar uma narrativa na outra, a cena não deixa de destacar o legado da Viúva Negra como uma heroína, mas, não vimos o mesmo com o seu legado enquanto mulher.
Por mais que a personagem que represente o mal seja interpretada por um homem, Dreykov (Ray Winstone) perde o foco para O Treinador. Enquanto todos estavam esperando um homem ou até mesmo um robô, O Treinador era a filha de Dreykov quando ainda criança tinha sido assassinada pela Viúva Negra. Dreykov resgata a filha submetendo-a a uma espécie de experimento científico que a transforma em uma arma poderosa, sem vida própria, sem liberdade e totalmente controlada pelo pai. O protocolo Treinador era acionado toda vez que uma Viúva Negra se desertava e as ordens era o extermínio.
E aí entra o ato central do filme: a Sala Vermelha. Estabelecida nas alturas, a personagem Melina (Rachel Weiz) une-se a Romanoff com o objetivo de derrubar Dreykov e libertar as outras Viúvas Negras de seu domínio. Mulher não foi feita para ser usada como arma ou como objetivo de violência, sedução, prazer, dominação, poder ou qualquer outra coisa. E o filme perder a oportunidade de mostrar isso. Poderia ter sido uma das melhores cenas do longa quando Romanoff enfrenta todas as Viúvas Negras ainda sob o domínio de Dreykov. No entanto, não foi o que vimos.
O melhor diálogo de todas as mais de duas horas de filme foi entre Natasha e Dreykov, no qual fomos descobrindo mais sobre a perversidade humana de um homem que sacrificava a vida de meninas por todo o mundo submetendo-as a um domínio e a uma exploração eternas. Natasha consegue resolver isso muito bem, mas sentimos como que a Marvel pisou em ovos para tocar em assuntos como o feminicídio, o abuso contra a mulher, o estupro, a exploração e a violência feminina.
Os próximos passos são esperançosos. Várias heroínas estão chegando através do Disney + e também nas direções e produções. A própria Johansson mantém seu contrato com os estúdios ativo. Ela que já participou da produção de Viúva Negra ainda pode contribuir por trás das câmeras em trabalhos futuros. Outras mulheres diretoras estão ocupando espaços nos filmes de heroínas e isso é positivo.
O legado de Viúva Negra como uma heroína e Vingadora foi justo. Mas, o seu legado como mulher, amiga, família, ficou ainda com pontas soltas que ainda podem ser corrigidas na Fase 4. Essa próxima fase do MCU está cumprindo com sua promessa em diversificar seus personagens a cada produção concretizada. Mais mulheres, personagens LGBTQIA+, homens e mulheres de outras nações e culturas que vão incluindo novas comunidades de pessoas que a cada dia sentem-se mais representados nas artes.
E é isso! A arte, o cinema, a música, a pintura, os livros, a literatura, a cultura é representação de nós mesmos, de nossas vidas. Logo, que eles revelem com mais sinceridade e abertura quem nós somos de verdade.
Por Dione Afonso | Jornalismo PUC Minas