26 Apr
26Apr

“Acha que as coisas são diferentes? Que os tempos são diferentes? Acha que não me matariam em um dia se você me revelasse? Quer acreditar que a prisão foi minha culpa... Porque você tem o escudo daquele homem branco. Tinham medo que a minha história fosse revelada. Então, eles me apagaram. Minha história. Mas já estão fazendo isso há 500 anos. Pode acreditar, meu irmão. Eles nunca vão deixar um homem negro ser o Capitão América. E mesmo que deixem... Nenhum negro que se respeite aceitaria ser”.    

[Isaiah Bradley, interpretado por Carl Lumbly].   




Falcão e o Soldado Invernal é a segunda produção da Fase 4 produzida pela Marvel Studios e veiculada pela plataforma de streaming do Disney +. A segunda série do MCU  traz Sebastian Stan e Anthony Mackie revivendo os respectivos James Buck Barnes o famoso Soldado Invernal e Sam Wilson, o Falcão. Como já sabemos, toda a produção da Marvel que vem sendo trabalhada é ambientada cronologicamente após o evento de Thanos na terra e seu combate com a equipe dos Vingadores que assistimos nos cinemas em abril de 2019. 

Então, após o estalo de Thanos, não somente os heróis, mas metade da humanidade “volta” ao mundo real e tem de se readaptar ao mundo que encontram. Claro que essa “repatriação” enfrentará desafios e desafiará leis e instituições, sobretudo na esfera política. Em fevereiro, vimos em WandaVision, como a heroína Wanda Maximoff (Elisabeth Olsen) teve de superar o luto e aceitar a morte de Visão (Paul Bettany). Agora, os heróis Sam e Buck também terão de se readaptar no novo mundo que a eles se apresenta. 

Totalmente diferente do que vimos com a dinâmica do casal anterior, agora, a nova série apresenta um projeto com mais “cara de Marvel” e os seis episódios de Falcão e o Soldado Invernal funcionam mais como um grande filme dividido em pequenas partes. Mas, não só isso. Sabemos que séries e filmes estão totalmente conectados nessa cronologia, portanto, tudo o que as séries do Disney + apresentar, terá desdobramentos nos longas. ⚡ (A partir daqui o texto segue com spoilers de toda a primeira temporada) 


A realidade nua e crua que nada tem o brilhantismo dos heróis 

O primeiro episódio mistura tributo aos fãs e aos antigos heróis e um plano de fundo dramático no qual o mundo tenta se recompor pós o blip do Thanos e do Hulk em Avengers EndGame no qual cinco anos depois, metade da população é trazida “de volta à vida”. Depois de vermos como que Wanda Maximoff se perdeu num luto muito doído a ela, pois “perdeu tudo o que tinha”, agora vamos entender como que Sam e Buck irão reconstruir suas vidas. À primeira hora, Sam continua seu legado de Falcão, um Vingador que trabalha ajudando em missões do governo americano. Por outro lado, Sam também tem que resolver a situação familiar e econômica com a irmã Sarah Wilson (Adepero Ouye) e seus dois sobrinhos. Sarah luta para sobreviver num comércio de peixes e Sam tenta reconectar seu amor e adoração à família. Enquanto isso Buck enfrenta sessões de terapia. Mais solitário, sozinho, perdido, sem amigos. Ele é perdoado de tosos os seus crimes respeitando a condição de que não se envolverá mais em assuntos de guerra. 

A realidade, na vida real, as coisas são bem mais duras do que as câmeras revelam. Ainda não especificado, nessas primeiras cenas revela-se que há um discurso social por trás de todo aquele brilhantismo heroico. Sarah questiona Sam. O questiona por ele ser herói renomado pro governo, mas que isso não paga as contas da família, não garante o sustento e nem o classifica um super-herói quando a missão é ser respeitado no dia a dia. Sam é negro, e sua família é uma família negra que tem de viver num Estado no qual ser negro não é uma opção, mas uma sentença. 

Todo esse contexto nos leva a perceber (em episódios seguintes) que o legado do escudo do Capitão América jamais poderia se sustentar sobre uma figura negra norte-americana. Pode um super-herói negro ser símbolo de uma nação? Para Sam, a resposta a essa pergunta já estava mais do que cala. Por fim, após Sam recusar (ou, talvez, ter sido coagido a entregar o escudo do Capitão América de Steve Rogers (Chris Evans) às organizações governamentais, o escudo parece ser tomado por um “novo herói”. UM NOVO CAPITÃO AMÉRICA. 


Narrativa, novos elementos, personagens e a política racista branca 

O reencontro de Sam e Buck aconteceu de maneira bastantes curiosa. A química entre os dois é muito bem trabalhada. Há uma saudável rivalidade marcada por um trauma de vida. Buck não supera o luto de Steve Rogers e as coisas pioram quando, em nome do governo, John Walker (Wyatt Russel) assume o escudo e o título de Novo Capitão América. É relevante levantar aqui a vida que se segue com Buck: largado, num apartamento vazio e aparentemente sem um amparo social que garanta sua sobrevivência. 

Não demora muito e a série comprova sua fórmula Marvel: a apresentação da ameaça. Um roteiro que sempre se repete em todo filme de super-herói. Basta uma ameaça contra o planeta que heróis se unem para aniquilar o mal e vencer o vilão. É apresentado uma organização chamada de “apátridas”, um grupo de pessoas lideradas pela Karli Moegenthau (Erin Kellyman). Uma supersoldada! Sim! Uma supersoldada, alguém que teve injetado no corpo o mesmo soro que fez de Steve Rogers o Capitão. As coisas, no entanto, ficam mais complicadas quando se descobre o grupo de Karli também são supersoldados. De onde eles vêm? Quem são eles? Qual a intenção deles? Os novos heróis da Marvel estão nessa trajetória em tentar pôr ordem num mundo que ainda sofre os impactos do evento Thanos. 

Barão Zemo retorna com Daniel Bruhl e Sharon Carter como Emily Van Camp. Zemo ressurge com uma nova visão e torna-se aquele vilão que amamos odiar. Com seu conhecimento no super-soro, Zemo guia a dupla dinâmica para a fonte de quem está causando tudo isso e descobrem a “cidade perdida de Madripoor”. Que, nas HQs possui um significado muito importante quando começa a abrigar heróis e mutantes fugitivos. Inclusive o próprio Nick Fury. A volta da Agente 13, Sharon Carter também nos pegou de surpresa (ou não), uma vez que não sabemos se ela é mais uma vez, uma agente infiltrada (repetir essa fórmula não seria má ideia) ou se Madripoor é seu refúgio até que sua situação com o governo seja perdoada. Já que deadeos eventos de Guerra Civil ela se tornou uma fugitiva. Sharon nos surpreende sendo, enfim, no último episódio, um belo plot twist quando se revela uma futura vilão para os próximos passos da Marvel e sua atuação no mercado clandestino. 


Wakanda Forever! E sua jurisdição 

As Dora Milaje têm jurisdição onde as Dora Milaje estiverem”. Estamos vendo o fechamento do segundo arco (aquele que se encarrega da introdução e apresentação do roteiro e personagens) e a introdução do terceiro e assim vamos começando a ter um possível vislumbre de que final ele nos reserva (o desenrolar da ameaça, investigações e desenvolvimento). 

Em longas de super-heróis é muito comum os escritores brincarem com a linha que separa o bem do mal; os valores dos vícios; a bondade humana da falta de empatia; o ódio do amor. Os que sabem e têm o dom de ousar fazem dessa linha tênue uma verdadeira mesclagem no qual permite que esses valores se confundam. O resultado disso? Vários filmes dessa natureza conseguem deixar com que o espectador crie uma certa empatia pelo vilão a ponto de as vezes, defendê-lo. Já avançando para o grand finale dessa temporada a série deixa o protagonista que o próprio nome carrega para desenvolver a história de Karli Morgenthau, a líder dos Apátridas. Com essa narrativa vemos presente o discurso inaugurado há mais de uma década do próprio Steve Rogers em Capitão América: OPrimeiro Vingador (Joe Johnston, 2011), quando ele foi escolhido para receber o soro do supersoldado. Ele foi escolhido não por sua capacidade física e qualidades exteriores (até porque ele era um asmático de 40 kilos num campo de guerra), mas foi a sua bondade, a pureza em seu coração, generosidade, aversão à guerra e pacificador. Tudo o que mais tarde tornou-se um belo legado carregado pelo escudo: símbolo de esperança. Sam Wilson/Falcão nos mostra que também é seguidor desses valores. Ele tenta não atirar e nem incitar a guerra ou uma briga. O diálogo, a proximidade devem ser sempre as primeiras armas em busca da paz e de ordem. 

Ademais, aquele que atualmente carrega o escudo parece não compactuar com esses valores. Literalmente manchando o escudo, John Walker se revelou no que muitos já desconfiavam. O episódio entrega por sua vez uma das cenas mais sangrenta e impactante. 

Mas, não só! 

Quando a Dora Milahe Ayo (Florence Kasumba) apareceu no fim do episódio anterior a gente já estava se preparando para o que o próximo nos reservaria. Ademais, não estávamos prontos para ver essas maravilhosas mulheres guerreiras wakandanas numa bela cena de ação com direito a trilha sonora de Wakanda e tudo o mais. Ayo era a soldada responsável pela guarda do Rei T’Chaka quando foi assassinado pelo Soldado Invernal (aliás, pelo Barão Zemo) em Capitão América: Guerra Civil (Joe Russo e Anthony Russo, 2016) quando discursava na ONU. Ayo retorna à série atrás de Buck quando descobre que ele tirou Zemo da prisão pois ele “é um meio para o fim”. Até o momento a série nos presenteou com a melhor cena de ação colocando todas as Dora Milajes contra o “basbacão” do John Walker. E quando uma delas empunha o escudo com classe, então.... nosso coração foi à loucura. 

Wakanda permanece e continua de pé e viva! Ayo foi uma grande responsável pelo processo de recuperação do Buck ajudando-o a deixar a vida de Soldado Invernal para trás. Ouvir uma Dora Milaje pronunciar as palavras do velho e antigo caderno vermelho entre as matas de Wakanda foi de arrepiar. E emocionante por fim quando Ayo disse: “você está livre, Buck”. 


O Capitão América que a sociedade precisa 

O tema do racismo é abordado de forma eficaz e com temas contundentes. Um herói negro de forte personalidade e protagonizando sua própria história também sofre racismo de autoridades, policiais e governantes. 

PODE UM HERÓI NEGRO SER SÍMBOLO DE UMA NAÇÃO?  Sam é negro e sabe que um negro representando a América não seria algo tão natural assim de se levar adiante. O legado do escudo é um legado feito por homens brancos destinado a brancos. Um negro empunhar esse escudo pode se tornar uma grande ofensa a essa trajetória. Em outras palavras e baseado na obra de Djamila Ribeiro, “esse não seria seu lugar de fala”. Uma vez subalterno, sempre subalterno. 

A América não precisa de alguém com o caráter de Sam e ser ícone de bondade para o mundo. Este não é seu lugar de fala. A América não é negra. Como poderia um herói negro representá-la? Estampa-la em outdoors pelo mundo? Ser ícone de heroísmo e justiça? Sam também pensava assim. Há uma narrativa política sendo costurada no enredo da série que coloca a supremacia branca como política autoritária e única capaz de salvar o mundo. Sam estava sendo manipulado por uma política de fachada que consolidava o real interesse de “devolver” o escudo para quem, de fato, tinha qualidades para representar a América. 

Quando veio ao ar o penúltimo episódio vemos ainda com mais clareza e coragem a abordagem da Marvel em suscitar um discurso político e até mesmo de protesto contra um governo racista e preconceituoso que até hoje impera na América. A fala de Isaiah Bradley vivido por Carl Lumbly é muito forte, pois confirma a supremacia branca e autoritária do país. 

Por sua vez, Sam Wilson / Falcão vivido por Anthony Mackie precisa redescobrir sua origem e reconhecer que já está na hora de aceitar que “não são os outros que dirão quem ele é e o que fará”. É preciso lutar a favor de uma igualdade humana. Ser negro não pode continuar sendo um atestado de óbito por uma sociedade injusta e sem amor. Ser negro é ser homem, mulher, herói, humano, pessoa de bem.... É poder ser feliz e livre. 

O peso de uma personalidade humana negra vestir o manto do Capitão América é grande. Sam, mais do que ninguém, sabia disso. Mas, ele sabia que precisava dar ao mundo uma nova chance de ver sua incompetência na política, no discurso econômico, nas ofertas empregatícias e no programa educacional. Ser um negro não pode, jamais, ser uma ineficácia do gene humano. Ser negro é ser o que quiser, onde quiser, com quem quiser, e como quiser. O discurso de Sam não é fajuto e nem distante do que o país vive. O novo herói enfrenta, de cabeça erguida, a própria autoridade governamental sobre suas falhas administrativas. O que importa não é o poder que tem, mas sim o que fazem com ele! 




“Sempre que eu levanto esse escudo, eu sei que têm milhões de pessoas por aí que vão me odiar por isso. Até agora. Aqui! Eu sinto, os olhares, o julgamento.  E não tem nada que eu possa fazer pra mudar, mas ainda tô aqui. Sem super soro, sem cabelos loiros ou olhos azuis. O único poder que eu tenho é acreditar que podemos fazer melhor”  

(Sam Wilson, personagem de Anthony Mackie no MCU. Falcão e o Soldado Invernal, 2021. Disney +)




Por Dione Afonso 

Jornalismo PUC-Minas

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