09 Oct
09Oct

“Escuridão, a mais pura escuridão não é a ausência de luz. É a certeza de que a luz nunca voltará. Mas a luz sempre volta para mostrar coisas essenciais: lar, família e coisas totalmente novas,  ou que não percebemos. Ela mostra novas possibilidades e nos desafia a buscá-las. Dessa vez a luz revelou os nossos heróis, saindo da escuridão para dizer que não ficaremos mais sozinhos. Era profunda a nossa escuridão e parecia engolir toda a esperança, mas esses heróis estavam aqui o tempo todo para nos lembrar de que a esperança existe, que é possível ve-la. Você só precisa olhar para o céu”. 

[LIGA DA JUSTIÇA, 2017, Warner Bros / DC]

 

 

 

Inspirado numa das HQs mais abusiva e polêmica da história. Garth Ennis fez de The Boys uma história que veio para destruir todo e qualquer padrão social que o universo de heróis já construiu há décadas e décadas. Como trazer isso para a TV? A tarefa era quase instransponível, mas nunca impossível. Seth Roger, Evan Goldberg e Eric Kripke adaptaram a sátira de Ennis para o serviço de streaming Amazon Prime Video.

A primeira temporada veio causando surpresas em 2019. The Boys mostra como seres superpoderosos agiriam no mundo real, satirizando histórias como da Liga da Justiça e dos Vingadores. As HQs foram publicadas entre 2006 e 2008 pela Dynamite Entertainment e, segundo o The New York Times, tornou-se líder nas vendas.

Tudo começa quando o jovem Hughie Campbell (Jack Quaid) assiste ao assassinato repentino e de forma brutal de sua namorada por um “super”. O herói tem a hipervelocidade e, quando não a vê, ele simplesmente estraçalha a garota deixando Hughie apenas segurando as duas mãos da namorada ficando todo ensanguentado.

Aí a saga começa...


CUIDADO! A partir daqui o texto terá spoilers da 2ª temporada

Vamos deixar um pouco de mão a primeira temporada e ir para a segunda. A Amazon liberou nesta última quinta-feira (08 de outubro) o oitavo e último episódio da segunda temporada. E que episódio. Um dos melhores até aqui. A presença girl power entre Kimiko (Karen Fukuhara), Rainha Maeve (Dominique McElligott) Luz Estrela/Annie January (Erin Moriarty) e Tempesta (Aya Cash) é uma cena consagrada. A afirmação de Francês (Tomer Kapon), “acho que as meninas dão conta”, é um hino à força e ao poder feminino tão subjugado na cultura pop e no cinema.

As 4 mulheres “supers” entre heroínas e vilãs, nos fazem levantar a questão: quem é herói e quem é vilão? Vemos que o fato de um super poder, que características que desafiam a capacidade humana e que a injeção de um soro misterioso não classifica quem é bom e quem é mal. Com metáfora direta a Capitão América: O Primeiro Vingador, não é o homem mais forte do mundo que vai nos salvar, mas aquele que tiver bom coragem e coragem acima de tudo.

O que Tempesta, Kimiko, Lus Estrela e Rainha Maeve fazem no último episódio da segunda temporada é, nada menos que corrigir o que Avengers tentou, mas não conseguiu em Infinity War e em Ultimato. The Boys desafia a normalidade construída pelos super-heróis padronizados em estereótipos de cor, raça, nação, sexualidade, e poder financeiro.


Da sátira a uma construção de identidade

O impacto causado pela sátira exagerada da primeira temporada foi o bastante para conquistar-nos. Vemos um herói dos oceanos sendo acusado de abuso sexual e machismo contra uma mulher. Pera aí, isso é ser um super-herói? Um herói de verdade não deveria lutar contra esses crimes de abuso e de violação humanos?

Billy Bruto (Karl Urban), Hughie, Francês, Kimiko e Leitinho (Laz Alonso) se revoltam contra a empresa do composto V da Vought (vemos aí uma ideologia semelhante à Hydra? Talvez). Mas a Vought se revela muito mais corrupta agora quando revela que nem todos nasceram para serem heróis, poderosos e fortes. Nesse mundo há os que nasceram com estrelinha na testa, e há os que nasceram para sofrer e até morrer, se for preciso.

A segunda temporada investe mais numa jornada de busca de identidade atrelada à vingança, à justiça, à boa conduta e à felicidade de se viver num país mais honesto. Os “meninos” – vulgo, vilões da história – se revoltam com a política heroica dos “supers” e embarcam numa jornada com o objetivo de desmantelar a política suja que putrefaz a sociedade.


Do que é feito um super-herói?

A primeira grande virada da série, ao responder essa questão é revelada com Hughie e Kimiko. Dois seres “deslocados” do grupo. Enquanto o primeiro começa a entender que precisa retomar seu caminho de onde parou, vencer o luto e caminhar com as próprias pernas, a segunda percebe que o ódio e a vingança nunca preencherão o vazio que a corrói. Ser herói é mais que isso: antes de salvar alguém ou o mundo, é preciso se certificar de que estamos salvos de nós mesmos.

Segundo, “um herói não se nasce, mas é feito”. O escândalo do composto V revelado ao mundo. No entanto, não é um soro do supersoldado e nem um composto poderoso que irá te classificar como um super-herói. Ele só vai te dar força e poder, mas caráter, coragem, amor e confiança, isso vem de berço e se fortalece aos poucos no dia a dia.

Becca Butcher (Shantel VanSanten), esposa de Billy, que tem seu ciclo encerrado nessa temporada, morre deixando um ensinamento muito importante: “ele foi criado com amor e ensinado a amar”, afirma referindo-se ao filho Ryan (Cameron Crovetti) que teve fruto de estupro com o Capitão Pátria (Antony Starr). Então, terceiro, um herói é feito, sobretudo de amor. Amor gera empatia e empatia, alteridade.


A ideologia doentia dos “supers”

Essa jornada de busca pessoal e de constructo identitário também pega os Sete de surpresa. Enquanto o Capitão Pátria tenta se descobrir com a ausência de Madelyn Stillwell (Elisabeth Shue), seu contato paterno e de esforço familiar com o filho Ryan vai de mal a pior. O desejo de se ter uma família perfeita e de “supers” cega-lhe os olhos e termina de forma trágica.

Enquanto isso, Profundo (Chace Crawford) tenta se redimir do ato de machismo e Rainha Maeve é revelada como gay ao descobrir sua ligação com uma antiga amiga. Parece que um super-herói não é perfeito. Ele tem dramas não só familiares, mas também de relação. Vive crises de identidade e de sentido de vida. Toma mais e mais quebras de estereótipos. Essa ideologia é doente, perversa e discriminatória, sem falar de segregacionista. Ela divide bons e maus como se tivesse autoridade para isso. Heróis tem defeitos, e um deles é se sentir superior a outros seres humanos. A linha tênue entre vilão e herói é muito mais torta do que se possa imaginar.



“Cinco anos atrás nós perdemos. Todos nós. Nós perdemos amigos, perdemos família. Perdemos uma parte nossa. Hoje temos a chance de ter tudo de volta. Conhece a sua equipe, conhece a sua missão. Peguem as joias, tragam elas de volta. Uma viagem pra cada um, não podem errar. Só há uma chance. Muitos de nós está indo pra lugares que já conhecem. Isso não quer saber que sabemos o que esperar. Tomem cuidado! Cuidem um dos outros. Essa é a luta das nossas vidas. Vamos vencer. Custe o que custar!”

(Discurso de Steve Rogers / Capitão América em Avengers: Ultimato. Joe e Anthony Russo, Marvel Studios, 2019)


 

 

Por Dione Afonso

Jornalismo PUC-Minas

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