08 Sep
08Sep

“Eles cuspiram em mim. Riram e fizeram piadas do meu cabelo. Fizeram da minha cor motivo de nojo e zombaria. Todos eles viram em mim uma oportunidade para demonstrar quem é que manda. E ficou claro que não era eu”. 

[Um jovem qualquer, 22, Belo Horizonte-MG].

 

 

“Meus óculos são os responsáveis pela maioria dos apelidos que eu recebi na infância. Até meu físico e estatura fez-me, muitas vezes ficar chorando no quarto e falar pra minha mãe que eu não queria mais ir para a escola”. 

[Um jovem qualquer, 18, Belo Horizonte-MG].

 

“Fui ignorada e humilhada não só pela cor de minha pele. Mas, na maioria das vezes eles me maltrataram por ser mulher, negra e pobre. Todos os dias eu dividia minha rotina entre escola, trabalho e família. Mas, isso me tornou uma aberração para a sociedade”. 

[Uma jovem qualquer, 25, Belo Horizonte-MG].

 

 

 

 

“Não seja uma mulherzinha”, “quando o homem chora ele revela que perdeu”, “vai princesinha, bata mais forte”, “quem sente dor é mulher”, “que cabelo é esse”... Cobra Kai, sequência de Karatê Kid chegou nesse semestre na plataforma de streaming Netflix. Uma produção sequencial que dá continuidade a um grande sucesso do cinema dos anos 80.

Os rivais Daniel LaRusso (Ralph Macchio) e Johnny Lawrence (William Zabka) estão de volta nas telas para nos fazer entender que future os lutadores de Karatê tiveram depois daquele fatídico campeonato que deu a LaRusso a vitória, desbancando Johnny Lawrence de um pódio que ocupava já há alguns campeonatos.

No entanto, a organização “Cobra Kai” é vista, já, desde o filme de 80 como uma escola baseada em regras que desprezam e selecionam. A saber, Cobra Kai é pautada no tripé: Acerte primeiro – Acerte Forte – Sem Compaixão. Portanto, ter compaixão é demonstrar fraqueza. Mulheres não eram bem-vindas no tatame. Fracos não eram aceitos. E se chorar, era banido.

Cobra Kai traz de volta o elenco original: Daniel LaRusso volta na pele de Ralph Macchio enfrentando seu antigo rival Johnny Lawrence interpretado por William Zabka. O antigo mestre Miyagi (Pat Morita) na série já é falecido, dando um ótimo arco para LaRusso, onde ele terá que enfrentar a missão de assumir o posto do seu antigo mestre. O antigo mestre de Johnny retorna. John Kreese (Martin Kove) é um homem perverso, machista, preconceituoso e sem compaixão. Ele estará disposto a poluir a nova geração de lutadores do Cobra Kai. O ator Pat Morita faleceu em 2005.


“Ninguém vence na vida praticando bullying

Na série, Daniel LaRusso e Johnny Lawrence são dois adultos que seguiram suas vidas após o tatame. Abandonaram o karatê e construíram uma nova vida. LaRusso se destacou na empresa automobilística tornando-se referência no mercado. Tem dois filhos Samantha LaRusso (Mary Mouser) e Anthony LaRusso (Griffin Santopietro) e é casado com Amanda LaRusso (Courtney Henggeler). Já Johnny não teve um futuro muito próspero. Sem esposa, tem um filho no qual nunca teve a presença paterna de cuidados e relações de família Robby Keene (Tanner Buchanan). Alcóolatra, sem dinheiro para se sustentar, após o karatê, Johnny não soube que rumo assumir na vida.

Ao defender um jovem de ataques preconceituosos, Miguel Diaz (Xolo Maridueña), Diaz pede para que o ensine a lutar para se defender. Uma semelhança com o clássico de 80, não é verdade? Assim começa a ser traçado o futuro de Johnny. Ele reativa a escola Cobra Kai de karatê sendo o novo mestre.

Lembre-se que o Cobra Kai tinha seus princípios. Princípios esses que segregavam alunos. Nenhum “defeito” era permitido. Até o fato de ser mulher era classificado nessa categoria. No entanto, a nova série começa a quebrar esses padrões. A história se passa umas 3 ou 4 décadas após aquele campeonato entre Daniel e Johnny. Já no auge dos anos 2000, abordar temas como preconceito, bullying, discriminação racial e social, é um grande salto. Com a nova geração representada por Miguel Diaz, Robby Keene e Samantha LaRusso, a série ganha respeito e importância social.


Cobra Kai: mais que uma escola rigorosa, passa a ser um centro de humanidade

Ou, pelo menos, precisa se tornar mais humana e inclusiva. Johnny se vê numa grande encruzilhada: ou defende os princípios nada humanos e inclusivos da antiga organização Cobra Kai; ou, motivado pela nova geração, acolhe a todos os jovens, independente de doutrina, classe, cor, sexo e inaugura uma nova escola mais dinâmica, inclusiva e humana. Claro, Johnny terá que sofrer um abandono completo de suas antigas regras para entender esse “novo mundo” que desaponta para ele.

Quando escolhemos fazer Jornalismo Narrativo, o maior desafio que temos é o de simplesmente narrar as histórias. Ouvi-las sem julgamento e sem respostas prontas diante dos fatos. Cada história tem sua relevância, sua importância e sua pauta de significação. E toda história merece ser contada. No início dessa matéria trouxemos relatos reais de jovens amigos que pediram para não serem identificados. Em cada palavra sentimos a dor deles. Quantas vezes eles foram motivados a tirarem a própria vida, a não povoar mais esse mundo, por ouvirem tantas vezes que a presença deles “sujava o país”.

Foi doído ouvir essas palavras. Isso é desumano.

Quando assistimos Cobra Kai, caímos no engano de classificar o amigo e o inimigo, separar o bonzinho (Daniel) do vilão (Johnny), assim como toda produção fílmica nos induz. Ademais, em alguns momentos percebemos o grande sacrifício que Johnny empreende para reconstruir sua vida. E, quantas vezes o dito “bonzinho” não contribuiu em nada, muito pelo contrário, interferiu maldosamente na vida de Johnny sem motivos.

Enfim, é preciso trazer Cobra Kai para nossas rodas de conversas afim de identificarmos as ações tanto verbais, quanto não-verbais que não se encaixam num modelo de vida humanitário e fraterno hoje em dia. A partir dessas ações, reconstruir e narrar novas histórias. Histórias que não segregam, mas que se complementam. Compartilham.

 

 

 “Se o plano ‘A’ não deu certo, não se preocupe. O alfabeto tem mais 25 letras para você tentar. Há momentos que o melhor lugar para se estar é no fundo do poço, porque no fundo do poço a única opção que temos é subir. Lembre-se: por maior que seja o buraco em que você se encontra, pense que por enquanto, ainda não há terra encima”

(MIYAGI, Kesuke “Karatê Kid”, 1980)


 

 

Por Dione Afonso

Jornalismo PUC-Minas

Comentários
* O e-mail não será publicado no site.