10 Sep
10Sep

“Sonhos são ceifados a cada dia. Não sei bem entender o porquê disso, mas 2019 tem iniciado de uma maneira bem amarga para nós. Agora, nos deparamos com essa onda de mortes contra jovens inocentes na Escola Raul Brasil em Suzano-SP. Dois jovens atiram aleatoriamente dentro do colégio e tira a vida de outros 5 jovens.

Em tempos de Políticas Públicas, em tempos de Campanha da Fraternidade, tendo acabado de sair de uma campanha que pediu por Segurança Pública junto de nossos irmãos da sociedade, deparamo-nos com cenas de horror e de morte como essa.

Mas o crime maior ainda não se trata do ato dos atiradores, mas trata-se de nossas entidades, nossos irmãos encontrarem em cenas como essas oportunidades para continuar defendendo o armamento da população chegando a afirmar que se um cidadão de bem dentro do colégio, “estivesse armado devidamente, o grau da criminalidade teria sido minimizado”. Minimizado como? Havendo uma possível troca de tiros? Se defender do mal com as mesmas armas que ele usa contra nós? 

O crime maior é quando não paramos para olhar para os nossos jovens que estão diariamente sofrendo bullying nas escolas. Param de estudar porque não suportam mais serem motivos de chacota em salas de aula. O crime maior é quando não paramos pra ajudar aquele jovem filho de pais que sofrem dependência química e ele não encontra apoio pra lutar a favor da vida, sua e de seus pais. O crime maior está quando excluímos da nossa roda de amizade aquele jovem que foi fruto de um estupro ou de uma mãe prostituta porque, ou ela sofreu abuso do marido, ou teve que vender o próprio corpo pra se sustentar.

Outro crime horrendo e que não parte de uma reflexão fundamentada é a de que “jovens que se divertem com os gamers, jogos on line, são jovens que acabarão abraçando o crime e ações violentas”. Recentemente eu escrevi um artigo alertando nossos jovens a respeito desses gamers que são ofertados pela internet. A prática dos jogos on line pode colocar sim a vida em risco: tudo depende do tempo em que se dedica frente ao computador, ou com o celular e fones de ouvido; tudo depende do quanto que a família é presente na vida de seus filhos...

Enfim, nossos jovens não estão morrendo com tiros em escolas, ou nas ruas, ou no vício de álcool e drogas. Mas eles estão sendo mortos dentro de nossas casas, trancados em seus quartos, sem convívio familiar, sem abraços de alguém adulto que eles podem tomar como referências. Nossos jovens morrem dentro de nossas casas porque eles não conseguem conversar e se abrir, falar de suas aspirações, de seus problemas, suas dúvidas. E, na dúvida, buscam através de outros meios satisfazer seus anseios.

Não é armando a população que nós vamos garantir uma vida mais saudável aos nossos jovens. Não é permitindo uma segurança baseada no porte, ou na posse de armas que vamos educar nossos filhos. Acredito que se nos preocuparmos mais com a educação, com a situação familiar em nossas casas, o resultado será bem mais positivo”. 

[SONHOS COM DATAS MARCADAS, março de 2019].

 

 

 

Dirigido por Chiwetel Ejiofor, O Menino que Descobriu o Vento é uma produção da Netflix lançada em março de 2019. No filme, o jovem Malawi, cansado de presenciar as dificuldades desumanas de seus amigos e de sua família, decide apostar em sua sede por conhecimento. Sua família enfrenta uma fase muito difícil de pobreza e fome na África. O filme ainda demonstra a realidade educacional em que um certo elitismo e poder econômico reinam no sistema de ensino. Malawi, então, apresenta uma ideia inovadora para o vilarejo em que mora.

Recentemente eu conheci um jovem (isso foi em 2019), que iniciou sua primeira faculdade comigo no Departamento de Comunicação e Artes da PUC Minas em Belo Horizonte. Um jovem com os seus 20 anos. Primeira faculdade. Eu estava em minha segunda. Eu, querendo aprofundar mais no universo da comunicação. Ele, sonhos. Sim, ele era apenas sonhos. Um menino alegre, sonhador, lutava com muita garra e otimismo para conquistar o que desejava.

Vou chama-lo de Pedro para não expor sua identidade real. Pedro morava em Contagem-MG um pouco distante da faculdade. Dois ônibus e o metrô faziam parte de sua rotina todos os dias para chegar na faculdade. Sem trabalho, se virava como podia. Morava com a mãe, e, segundo ele, num bairro de situação social bem conflitiva. Algo no olhar do Pedro me intrigava. Era como se alguma coisa ali estava gritando pra mim: ele não está bem.

Foi quando um certo dia eu tomei coragem e decidi falar pra ele, “Pedro, você quer conversar? Parece que você está precisando de ajuda”. Nesse dia eu reparei que ele estava com a mochila cheia de produtos para venda, como um camelô. E aí eu percebi o grito de ajuda dele. Nesse dia ele não quis conversar. Mas, na semana seguinte, no intervalo de 10 minutos de uma aula para outra, ele me pediu pra ficar na sala. Foi aí que eu o ouvi.

“Dione, ontem eu cheguei em casa e vi que minha mãe não havia feito o almoço. Ela sempre me espera para almoçar. Então eu percebi o que faltava. Peguei minha mochila e comecei a vender essas coisas (eram uns pacotes de pimentinhas) para conseguir comprar um pacote de macarrão pra gente almoçar naquele dia. E eu consegui, voltei pra casa e entreguei pra ela. Foi o melhor macarrão que comemos. Eu estou com três mensalidades atrasadas da faculdade e eu não vou conseguir renovar minha matrícula. Meu sonho chega ao fim aqui”.

Isso foi um soco no meu estômago. Eu não podia chorar ali (sou um jornalista muito emotivo e ainda não consegui trabalhar isso). É difícil a arte do ouvir. Ouvir e não interferir na história do outro. Pois ela é do outro. Mas, um jovem me contando coisas assim mexe muito comigo. É inevitável. Mas, nesse momento eu ergui os olhos, disfarcei até que bem e muitas coisas começaram a vir em minha cabeça. Sem saber o que fazer eu perguntei: “Pedro, e hoje, vocês têm o que almoçar?”. E ele respondeu: “No metrô de volta para casa eu vou vender essas coisas e torcer para que até o ponto final eu consiga o suficiente para uma sacola de arroz e de feijão”. Eu só soltei um “meu Deus, o que eu faço?”... Os 10 minutos do intervalo estavam acabando, os colegas retornando pra sala, num supetão eu chamei ele pra ir para a cantina comigo. Ele resistiu. Preferiu não perder a próxima aula. E não quis mais tocar no assunto.

Imediatamente eu acionei alguns colegas da sala de aula. Não expus o amigo, mas dei um jeito de promover alguma coisa nos bastidores. Se ele fosse exposto, não sei o que aconteceria. O que importa é que com alguma ajuda sem ele saber, conseguimos quitar as mensalidades atrasadas dele para que conseguisse renovar sua matrícula. Mas no semestre seguinte, Pedro veio diferente. Não era mais aquele jovem bem arrumado, de calça e camisa bem passada. Cabelo arrumado, tênis chic. Não. Pedro, no primeiro dia de aula veio usando um boné estranho, percebi que o cabelo estava desarrumado, bermudão largo, corrente no pescoço e um juliete no rosto. Aqueles óculos espelhados coloridos e nada discretos.

Quando foi questionado ele disse “resolvi mostrar pra vocês quem eu sou de verdade. Eu vim pra faculdade com o intuito de mostrar alguém diferente. Alguém que não corresponde ao que eu sou lá na minha favela, vivendo com minha mãe. Mas não tava colando. Não era eu. Então, eu acho que se eu me encaixo aqui, tem que ser do jeito que eu sou, não vestindo uma carapuça que não me cabe. Eu sou jovem de favela sim, já fui preso, já usei drogas, já fui perseguido pela polícia, já passei fome e bati em algumas pessoas, nunca matei, mas já tive arma de fogo. Esse sou eu. Eu só queria concretizar meu sonho de ser uma pessoa melhor. Mas, porque que pra gente como eu ser melhor, temos que nos tornar alguém que não somos?”.

Essa história não termina aqui. Um mês depois, Pedro teve que trancar o curso, pois o reajuste da mensalidade o impossibilitou de dar continuidade ao que sonhava. Ele passou a não ser mais bem visto pelos colegas. Ninguém se aproximava dele por conta de seu jeito de se vestir. Mais um sonho foi assassinado por nós. Mais uma história foi impedida de ter sua continuidade por conta dos estereótipos que alimentamos.


Juventude, sonhos e conquistas

A interpretação do jovem Malawi (Maxwell Simba) é bastante realista. Ele é um jovem de 13 anos que alimenta sonhos grandiosos de superação e também aqueles de conquista e de realização. Um garoto que sustenta amizades saudáveis, têm as suas peripécias e aprontam altas aventuras ao redor do povoado. Mas Malawi quer mais, ele sonha com mais. O jovem nunca se conformou com a realidade sofrida e pobre de sua casa. Dói no coração dele ver o pai e a mãe se sacrificando para que o lar tenha sempre do bom e do melhor. Quantas vezes Malawi viu sua mãe chorando ao tentar racionar o alimento da despensa para que não faltasse no dia seguinte.

Mas, quando o pai de Malawi não conseguiu pagar a mensalidade de sua escola, para Malawi esse foi o grito que eclodiu em seu corpo. Inconformado, o jovem começou a ir em busca de seu conhecimento e a lutar pelo seu sonho: salvar sua família. Malawi buscou forças de dentro de si para que seu sonho tornasse realidade para seu povo.

As coisas não são tão simples assim. Para realizar seus sonhos e salvar seu povo, Malawi terá que enfrentar a família que não aposta em seu plano. Seu pai o depõe rigorosamente dizendo que ele deve parar de agir como um jovem que não enxerga a realidade e passar a arregaçar as mangas para algo mais sério. Depois, ele tem de enfrentar seus amigos que não acreditam que é possível mudar de vida, sair da miséria que enfrentam apostando num “sonho adolescente”. E enfrentar um sistema social que não facilita para que jovens como ele possam sonhar e nem muito menos desenvolver grandes projetos.

Os adultos precisam de mais histórias. O roteiro de Brian Mealer e de William Kamkwamba baseia num fato real do norte da África. Sua história comoveu o mundo e seu invento não só salvou sua família como tornou-se projeto reconhecido pelas autoridades locais e tornou-se empreendimento para outros vilarejos. “Os adultos precisam de ouvir mais histórias. Essas histórias pequenas, simples, fábulas, contos de criança. Quem sabe ouvindo mais histórias eles possam olhar com mais amor e esperança para seus filhos, para os jovens e para o mundo”.

Portanto, O Menino que Descobriu o Vento não é só mais uma história. É exemplo de vida e de garra para a nossa juventude. Quantos jovens hoje em dia são sufocados e veem seus sonhos sendo pisoteados e enterrados porque, aos olhos dos adultos não passam de simples distrações e devaneios juvenis? Os adultos perderam a capacidade de dar ouvidos às histórias.



“Meus amigos são soldados, não da guerra, mas das ruas. Eles lutam por suas vidas. Não importa a minha cor. Não importa se eu quero. Não quer dizer que vai acontecer. Não pode ir contra sua gente, sangue do seu sangue. Perdi muitos amigos que morreram numa guerra não declarada. Eles podem se identificar com essas histórias, levando em consideração tudo que vivem.”

(Do filme “Escritores da Liberdade”)


 

 

Por Dione Afonso

Jornalismo PUC-Minas

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