04 Sep
04Sep

“Essa quarentena poderia durar para sempre!”

Esse foi o pedido de Maria Luiza*, 05 anos, feito ao seu pai Gilberto. Ao contemplar 90 dias de quarentena, Gilberto recebe um telefonema de sua empresa. Com a flexibilização da abertura dos comércios, as atividades do serviço de Gilberto retomam à normalidade. A pequena Maria Luiza abraça os pés do pai e pede pra que ele não volte ao trabalho. Fazia muito tempo que a filha não tinha a oportunidade de brincar com o pai e a mãe durante tanto tempo assim. Os pais se viram diante de um dilema: perceberam o quanto estavam distantes da filha ao mesmo tempo que batalham para dar sustento à família. Gilberto voltou ao trabalho, mas, ele e a esposa se comprometeram em ser mais flexíveis e presentes na vida de Maria Luiza”. 

[*O nome é fictício a pedido da família, Belo Horizonte-MG, junho de 2020].

 

 

 

Entre as mais novidades e impactos que a pandemia nos apresenta, uma delas é a relação familiar. No relato da pequena de 05 anos de idade, percebemos o quanto nossos filhos crescem sem que a eles seja transmitida valores da família. A ausência dos pais no período do desenvolvimento dos filhos implica fortemente no fortalecimento dos vínculos quando estes estiverem passando pela juventude.

Para narrar essa história, resolvemos resgatar a narrativa cinematográfica da Animação da Netflix, Klaus. É a primeira produção em animação original da plataforma de streaming. Sergio Pablos, de Meu Malvado Favorito esteve também na produção. Lançada em dezembro de 2019, a história assume a grande missão de recontar a origem do bom velhinho Papai Noel.

Igual à Maria Luiza de nossa entrevista dessa semana, Klaus também vai tocar em temas como: família, presença, educação, e valores como trabalho em equipe, amizade, companheirismo e confiança. Pois, a questão da confiança também é fortemente imbricada nessa construção relacional familiar entre pais e filhos, adultos e jovens. Se a infância foi marcada pela ausência dos adultos, como estabelecer vínculos de confiança se ela não foi construída lá trás?

Com a pandemia, a “grande família” passou a habitar o mesmo ambiente 24h diárias, por meses. Descobrimos não só que a parede da cozinha havia mudado de cor, mas também descobrimos que a minha menina virou adolescente e gente grande. Descobrimos que meu filho já tinha pintado o cabelo e adotado um novo estilo de roupas. Descobrimos que nossos filhos nos amam e sentem falta dessa correspondência amorosa dos pais.


“As crianças falam”

Sim! Jesper, o personagem principal descobriu o poder de fala de uma criança no momento em que ninguém mais o ouvia. Ele teve que se desconstruir e voltar a entender o que é viver em comunidade. O que é trabalhar em equipe e dar valor às pequenas coisas. “As crianças falam” e querem ser ouvidas. Elas conversam com seus amigos imaginários desejosas de que elas sempre tenham alguém para interagir com elas. Elas têm sonhos e desejos em conquistar o mundo que, nessa idade, é algo grandioso para elas.

Percebemos em Klaus que um grande empreendimento começa com uma pequena ação: ouvir. Só isso. Sente-se e ouça. Ouça qualquer coisa. Uma pessoa, uma música, um grunhir ou latir, zumbir ou assoviar de alguma espécie da fauna. Simplesmente ouça. E foi assim que Jesper conhece Klaus. Um homem grandalhão, morador afastado, lá no meio da floresta, numa casa modesta, mas acolhedora. Jesper só entendeu Klaus quando ele sentou para ouvi-lo. “Papai, eu não quero que o senhor volte para o trabalho”. Gilberto se viu no meio de uma encruzilhada, tirou a pequena de seus pés e a abraçou como nunca havia abraçado a filha. E chorou.

Choro igual a esse ele só havia manifestado no nascimento dela. E foi exatamente isso que aconteceu: um novo nascimento. Só que agora, ele nasceu para ela. E a mãe, de frente do fogão à gás na cozinha, interrompe o cozimento do arroz sem se preocupar se vai atrasar o almoço ou não e vai abraçar marido e filha. E sorri. Mas aquele sorriso que indica: e agora, Gilberto? O que foi que fizemos com nossa filha?


“Todo mundo deu o melhor de si”

Jesper é enviado (forçosamente) pelo pai para um vilarejo distante, numa ilha afastada no norte europeu chamada Smeeresburg. Sua missão é exercer, definitivamente seu ofício de carteiro. Jesper é incluído numa sociedade em que as coisas, para chegarem em suas mãos, precisam ser trabalhadas. Nada virá de graça. Tudo deverá ser conquistado. Jesper percebe que é preciso entender o valor do trabalho em equipe. Além disso, percebe também que não sabe de tudo e que ele precisa descobrir pessoas que saibam outros ofícios para desenvolver cada tarefa da missão.

E aí está o sentido de que cada um precisa dar tudo, ou o melhor de si. Gilberto e a esposa entenderam que deram o melhor de cada um. Agora era hora de sentar e partilhar a vida com a família que ali, abraçada aos pés pedia um pouco mais de cada um. A realidade econômica e o contexto social em que vivem não é um ponto positivo que facilite essa empreitada. Muito pelo contrário: a pressão vivida no trabalho, a tensão das contas pra pagar no fim do mês, o corte de funcionários da empresa, o auxílio emergencial do governo que nunca chegou... Pressões da vida adulta.

Mas ali, abraçada aos pés estava a maior alegria de suas vidas: a pequena Maria Luiza... “Papai...”, conte uma história. E os adultos precisam redescobrir as histórias. Precisamos ouvir mais histórias para que as contemos para nossos filhos. São as pequenas histórias que nos cativam. Histórias curtas, simples, talvez até infantis. Mas, que ensinam, cativam, cicatrizam...

 

 

 

 “Voldemort desprezou o amor por dois motivos: primeiro porque ele nunca o conheceu, porque nunca foi amado por seus pais, Mérope Gaunt e o trouxa, segundo, por ele não ter sido capaz de amar, ele se sentiu vulnerável, por exemplo diante da magia de sua mãe que o salvou naquela noite. Voldemort não só desconhecia a magia como também a ignorava”

(ROWLING, J. K. “Harry Potter e o Enigma do Príncipe”, 2005)


 

 

Por Dione Afonso

Jornalismo PUC-Minas

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