14 Sep
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A produção televisiva brasileira chegou ao streaming em setembro de 2019. Uma história ficcional de grande sucesso; um roteiro afiadíssimo; diálogos impecáveis; dramas realistas do Brasil “favelado” com muita fidelidade; e, atuações de tirar o chapéu. Produzida pelo maioral “youtuber” KondZilla, a série, mesmo tendo se tornado uma espécie de “carro-chefe” mais para popularizar o funk e o seu criador, ela soube costurar camadas difíceis de trabalhar e de trazer para as telinhas. 

Sintonia é protagonizada por um trio de amigos que, vivendo e sobrevivendo na realidade da favela brasileira, cada um explora um caminho diferente. É como se você acompanhasse três narrativas dentro de uma única produção. E é exatamente isso: desde a primeira temporada é perceptível que estamos diante de três realidades diferentes; três caminhos diferentes, mas tudo, sempre volta amarradinho na verdadeira amizada que Doni, Rita e Nando construíram desde a infância. Agora, com o fim da quarta temporada, a série enfrenta problemas muito visíveis para encerrar tudo no próximo ano com o anúncio da temporada final. 


A verdadeira amizade sofrendo uma falta de sintonia 

Desde sua primeira temporada, o carisma e a amizade do trio principal: Doni, Rita e Nando ganhou a simpatia do público. Uma amizade que teve a rua como casa, a favela como vida e a vulnerabilidade social como única escolha. Dificuldades para estudar, para sobreviver; adolescentes ficando órfãos muito cedo e sendo criados pelos vizinhos; falta de oportunidades; corrupção da justiça e a presença de uma religião focada no emocional e no proselitismo e pentecostal fez de Sintonia, o quadro ideal de uma das realidades mais vivas do Brasil. 

O pilar sólido de toda a série é apoiado na amizade. Três jovens que tentam manter a mesma sintonia, unidos pelo carinho, amor e até mesmo, unidos pela dificuldade e desafios que a própria favela impõe. Enquanto um encontra um “futuro promissor” no tráfico; o outro sonha com o sucesso dos palcos e do funk. Nando (Christian Malheiros), que se torna pai muito precoce, acaba se tornando um chefe do alto escalão do tráfico de drogas dentro da favela. Nisso, a série ousa em apresentar os esquemas sujos e desumanos do tráfico e até a corrupção policial que se envolve. 

Rita (Bruna Mascarenhas), que vive de seus trampos, sofreu violência doméstica e acabou encontrando na religião um suporte, é a personagem que mais explora as crises identitárias que muitos jovens enfrentam. Doni (Jottapê), que sonha com a carreira de MC explora o caminho do sucesso, percebe que não é tão fácil assim viver do talento e da música. Este, é talvez o arco menos explorado e o mais fraco do roteiro. Mas a quarta temporada enfrenta desafios maiores. 


Ainda o problema da falta de representatividade 

É decepcionante que, mesmo numa produção em que tenha a favela como terreno principal da trama e o funk como uma espécie de protagonismo, percebe-se que os personagens, ou são, na maioria, brancos, ou homens, ou homens brancos. Percebe-se que a presença feminina é descartada e a presença de negros é um tanto ridícula. Não que não tenha, mas os poucos que aparecem, não “fazem sucesso” e são reduzidos a meras participações. É repugnante o que se fez com os personagens dos irmãos Jefferson Silvério e Júlio Silvério (Rivaldo e Jaspio) que se tornaram uma espécie de bobos da corte só para garantir a piada e o humor nas temporadas 3 e 4. 

A maioria dos negros que aparecem em Sintonia, ou são traficantes, ou figurantes; as mulheres são sempre vitimadas e, tanto no sucesso do funk, quanto na presença forte da favela, elas pouco têm sua relevância. MC Luzi (Fanieh) tinha tudo pra se tornar uma protagonista de peso, mas o roteiro resolveu engaveta-la e reduzir sua participação a meras entradas em cena apenas para justificar a masculinidade que estava em vigor. Por que que o artista do funk que protagoniza a série é um jovem branco? A atuação de Jottapê é incrível, nisso ele merece todo o crédito, contudo, a representatividade erra feio nesse ponto. 

Duas merecem destaque: a Pastora Sueli (Fernanda Viacava), no qual o roteiro é muito feliz quando decide colocar uma mulher à frente de uma igreja, ao invés de se submeter aos antigos padrões normativos bíblicos em ter um homem – um varão – como ícone. E Rita, uma das protagonistas que apresenta um crescimento de personagem surpreendente nas quatro temporadas. O fato de ter uma protagonista ao lado de dois homens, cujo o crescimento se sobrepõe a eles é muito relevante para abrir-se uma discussão sobre o protagonismo feminino na favela e no audiovisual. Enquanto Doni não se desenvolve, e fica rodando no seu mundinho do funk a lá um cachorro atrás de se próprio rabo – Nando também não age diferente: líder do crime organizado, o personagem também não nos surpreende, apresentando uma narrativa previsível. 


"Sintonia" a la Machado de Assis 

Para quem é fã de literatura clássica brasileira, com certeza deve conhecer o estilo machadiano da literatura romancista. Para quem se aventura a ler Machado de Assis, já sabe que toda a história vai se encerrar com seus personagens em uma encruzilhada. Não é atoa que em Dom Casmurro, Assis decide acabar com a vida dos seus protagonistas por não saber o que fazer com eles. Na série de KondZilla não acontece diferente. Há dois problemas sérios na quarta temporada. 

O primeiro deles é, além do amadurecimento dos personagens, o roteiro não faz ideia do que fazer com o futuro deles. Talvez o futuro da Rita seja o mais claro de se visualizar, contudo, o restante do elenco parece perdido quanto às incertezas de seus personagens. Isso nos leva ao segundo problema: a justiça social, o julgamento honesto e a prevalência de uma força ética e moral frente às vulnerabilidades perde sua credibilidade creditando uma ode ao crime organizado. A favela deixa de ser palco de esperança e torna-se um campo de frustrações; um ambiente em que se é impossível de construir uma vida baseada no amor e na amizade e um lugar de morte e sofrimento.

É como se tudo encaminhasse para um triste fim. É como se a vida aqui não tivesse chance e o crime tem sua última palavra. A última temporada terá um desafio quase que impossível de se contornar, mas há pontos fortes na série que se forem bem explorados, tudo poderá se resolver. Sintonia é aquela produção que merecia mais reconhecimento. Muito bem produzida, com uma fotografia impecável e uma trilha sonora de tirar o fôlego. Infelizmente a quarta temporada nos apresentou uma favela que parece que lá só existe tiros, morte, crime, drogas e pobreza. Sabemos que não é assim, mas quem assiste esses episódios, faz parecer que é.




Por Dione Afonso  |  Jornalista

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