08 Feb
08Feb

“O Boitatá pode ser uma explicação mágica para o fogo-fátuo (também chamado de fogo-tolo, ou, no interior do Brasil de fogo-corredor ou ainda João-galafoice. É uma luz azulada que pode ser vista em pântanos, brejos, etc. A versão que predominou foi a do Rio Grande do Sul. Nessa Região, reza a Lenda que houve um período de noite sem fim nas Matas. Além da escuridão, houve uma enorme enchente causada por chuvas torrenciais. Assustados, os animais correram para um ponto mais elevado a fim de se protegerem. A Boiguaçu, uma Cobra que vivia numa gruta escura, acorda com a inundação e, faminta, decide sair em busca de alimento, com a vantagem de ser o único bicho acostumado a enxergar na escuridão. Decide comer a parte que mais lhe apetecia, os olhos dos animais e de tanto comê-los vai ficando toda luminosa, cheia de luz de todos esses olhos.”

   [José de Anchieta, o padre jesuíta chegou a relatar em uma de suas cartas a lenda do “fogo corredor” em 1560].   




Carlos Saldanha é carioca e um dos nomes bem significativos no campo da indústria cinematográfica do Brasil. Sua mais nova empreitada ousa em reestruturar a cultura folclórica do Brasil trazendo uma nova versão daquelas lendas que fizeram parte de nossa cultura e que hoje precisam voltar a nos conquistar e nos fazer sonhar. Mesmo tendo sido pouco explorado a cultura brasileira na primeira temporada, nós já tivemos um grande presente com a investida de Cidade Invisível que estreou na Netflix nessa sexta-feira (06). 

Essa é a primeira série de Saldanha e é uma ode maravilhosa e espetacular que elogia grandemente a Cultura do Brasil e o Folclore nacional. Com a ousada missão de levar o folclore brasileiro para o mundo e a investida da Netflix em cumprir com essa missão, Saldanha aborda as lendas de Cuca, Saci Pererê, Curupira, Boto Rosa, Corpo Seco de uma maneira mais adulta e até mesmo assustadora. Não chega a ser uma produção com pitada de sobrenatural, mas atinge o nível de suspense e terror leve e dinâmico que nos faz maratonar com acessibilidade as histórias da infância. 


Cuidado! Texto com spoilers da primeira temporada 

Mesmo sendo um trabalho que teve medo de avançar, recebemos uma produção tímida, com certas pitadas de ousadia. Mas tem que avançar mais afim de nos convencer. Alessandra Negrini e Marcos Pigossi protagonizam a série, ela com uma versão enigmática da  Cuca e ele, Eric, um policial ambiental que tem um contato no mínimo impossível com um boto que virou homem em sua caminhonete. Nessa versão da Cuca que pode nos assustar bastante desconstrói algo que um dia o Sítio do Pica-Pau Amarelo construiu. Saldanha tira a infantilidade das lendas e insere os adultos naqueles contos que um dia alimentaram seus filhos enriquecendo gerações de histórias e de cultura folclórica. 

Eric, que é um policial descrente é o personagem que passa pelo luto de sua esposa e começa a perceber elementos estranhos e sobrenaturais. A primeira temporada dá destaque a Iara, a sereia ou Mãe D’Água, ao Saci, Tutu e à Cuca. Ah! Temos um vislumbre também do Boto Cor-de-Rosa que poderia ter sido mais investida num Jesus Luz, já que foi pouco satisfatória a atuação de Victor Sparapane. 

O ator Fábio Lago é quem nos conquista com sua versão incrível do Curupira. Ele entrega tudo o que tem para nos apresentar uma das lendas mais famosas do Brasil e esperamos ver muito mais dele ainda, talvez seja o ator que mais ousou em seu personagem (Saldanha é isso que queremos ver ainda mais) Um ser da selva, da mata, protetor da flora e da fauna e defensor contra aqueles que desejam ferir o verde e a natureza. Lago é simplesmente incrível em sua atuação. De um mendigo de rua se retransforma no verdadeiro cabeça de fogo disposto a banir de vez aqueles que o feriram, porque feriram a terra. O Curupira nos encantou com sua trajetória nessa primeira temporada, é uma lenda que tem tudo pra crescer caso a série ouse mais e avance mais. 


“Eles são um reflexo de nós” 

Essa é a primeira vez que o folclore nacional ganha uma produção digna de suas lendas e histórias. Afastarmo-nos de um universo de princesas e fadas, duendes e elfos, bruxos e magia é essencial para adentrarmos num outro mais pessoal mais nosso e mais de nossa terra. Ao percebermos que houve um ciclo que se fechou com as histórias do Boto Rosa e do Saci, ainda teremos muito pra nos enriquecer em possíveis próximas temporadas. E, mesmo assim, não acreditamos que essas lendas que se encerraram na primeira temporada não retornem num futuro próximo. 

Um elemento significativo também é de vermos um Rio de Janeiro longe de Copacabana e do Leblon e nos insere na Lapa e até numa ocupação local. O cartão postal mais conhecido do Brasil também tem suas belezas ocultas que precisam ser mais exploradas. Sabemos que atualmente a Cidade Maravilhosa não tem vivido dias maravilhosos no campo da política, educação e saúde e sua posição atual interfere na imagem do país brasileiro. Ademais, sentimos falta de uma Amazônia ou dos grandes rios do país, mesmo o personagem de Sparapane ter sido nomeado como Manaus. 

ELES SÃO UM REFLEXO DE NÓS! As lendas são algo invisível que reflete uma parcela humana do que nós somos ou pensamos. A beleza, a sedução, o medo, a ganância e a ambição podem ser vistas representadas na lenda do Corpo Seco ou do Boto cor de rosa. De Iara ou Mãe D'Água até à Cuca e o Curupira. O arco da primeira temporada se encerra positivamente fazendo-nos querer maratonar e descobrir onde tudo isso vai chegar. O Policial Ambiental Eric (Pigossi) pode nos surpreender muito ainda. 


O que vem por aí 

Ainda aguardando a confirmação de uma possível segunda temporada, vemos a primeira se encerrar com o policial Eric sendo levado pelos seres lendários Cuca, Iara e Curupira na mata. Após ter tirado o espírito do Corpo Seco de sua filha e ter se apossado dele, Eric desejava banir para sempre essas criaturas. Algo muito rico de se explorar é a questão do povo da aldeia que temem a expulsão de suas famílias daquela terra. O desaparecimento das lendas folclóricas refletia também na vulnerabilidade da terra e da natureza, ou seja, sem os protetores da natureza, a mata corria perigo de desaparecer para dar lugar a um empreendimento globalizado de altos prédios e centros comerciais luxuosos. 

Esse embate político e social pode ganhar muita força se for explorado com mais ousadia em temporadas futuras. Talvez o risco maior está na reinserção do policial de volta à sociedade, mas, acreditamos na capacidade de Saldanha em trazê-lo de volta. As lendas folclóricas do Brasil são muito extensas, portanto, ainda sonhamos em ver como Saldanha vai nos apresentar a lenda da mula sem-cabeça, da vitória régia, do boitatá, da boiúna... 

Essas lendas trazem um elemento muito particular de cada cultura e de cada região do país, sobretudo. Elas são culturais porque regionais, locais e de significado rico e antropológico. Queremos ver um Brasil sendo representado culturalmente respeitando as origens de cada lugar e de cada região. Que Manaus seja apenas um ponta-pé inicial e grandioso para nós brasileiros. Cidade Invisível, caso ouse mais e avance mais pode se tornar um recado sócio-político significativo para a cultura cinematográfica. 



“A lenda do Curupira vem dos índios da tribo tupi-guarani:  também conhecido como Caipora, Caiçara, Caapora, Anhanga ou Pai-do-mato, todos esses nomes identificam uma entidade da mitologia tupi-guarani, um protetor das matas e dos animais silvestres. Representado por um anão de cabelos vermelhos e compridos, e com os pés virados para trás, que fazem se perder aqueles que o perseguem pelos rastros. Monta num porco do mato e castiga todos que desrespeitam a natureza. Quando alguém desaparece nas matas, muitos habitantes do interior acreditam que é obra do curupira. Os índios, para agradá-lo, deixavam oferendas nas clareiras, como penas, esteiras e cobertores. Também se dizia que uma pessoa deveria levar um rolo de fumo se fosse entrar na mata, para lhe oferecer caso o encontrasse. Sua presença é relatada desde os primeiros tempos da colonização. Conforme a região ele pode ser uma mulher ou uma criança de uma perna só que anda pulando, ou um homem gigante montado num porco do mato, tendo como acompanhante o cachorro Papa-mel.” 

(lenda transmitida em livros de escola)



Por Dione Afonso 

Jornalismo PUC-Minas

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