10 Mar
10Mar

“Na planície avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes. Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos. Ordinariamente andavam pouco, mas como haviam repousado bastante na areia do rio seco, a viagem progredira bem três léguas. Fazia horas que procuravam uma sombra. A folhagem dos juazeiros apareceu longe, através dos galhos pelados da catinga rala.”.    

[Graciliano Ramos, Vidas Secas, 1938].   




Filmado em Unaí, município do interior de Minas Gerais com pouco menos de 10 mil habitantes, Querência nos remete a uma história de sobrevivência no meio rural. Dirigido por Helvécio Marins Jr. o longa apresenta um pano de fundo (mesmo que quase enigmático e imperceptível) um discurso político de esquecimento e uma realidade social que tem suas nuances desprezadas pelo desenvolvimento local. 

A partir do personagem principal, um vaqueiro que sofre com um assalto à sua fazenda e é abandonado, enxergamos um discurso social que perde seu valor quando a vida da cidade se torna a única saída para sobreviver. No entanto, o vaqueiro Marcelo (Marcelo Di Souza) luta por sua raiz cultural e até mesmo existencial e abraça uma estrada de resistência e superação. 

O longa-metragem do cineasta mineiro é marcada por uma paleta de cores frias e bastante escuras que nos ajuda a nos inserir no contexto de uma história sem muitas alegrias e esperanças. 


Seu sonho o manteve de pé 

Marcelo, então, busca outras soluções para se reerguer e não abandonar sua história, sua vida e nem mesmo seu sonho. Recorrendo à irmã e a ajuda de amigos ele, aos poucos começa a se reerguer. É tocante a cena em que Marcelo começa a vender os animais da fazenda e a comercializar uma galinha a preço muito inferior só para que ele tenha alguns trocados no bolso. 

Nada de lágrimas, nada de cenas picantes, nada de sequências de ações e nem de grandes diálogos. Aliás, diálogo é algo muito raro também em toda a trama. Conversam-se pouco, quase não se discutem, mas os olhares são as grandes chaves para se entender um ao outro. E as mãos, os gestos simplórios da vida do interior de Minas Gerais nos fazem mergulhar numa história de muita simplicidade e de lembranças. 

Helvécio não abandona a cultura mineira. Numa mesa encontra-se o bom café puro, o pão de queijo e o queijo minas ao lado da goiabada. O sotaque não nos é muito apresentado, mas isso pode ser compreendido uma vez que Unaí está na região norte do estado, lá em cima, bem pertinho do DF fazendo divisa com o estado de Goiás. Portanto o sotaque carregado do “mineiro uai” já não é muito presente. Assim como no sul no qual o mineiro se mistura com o paulista e na outra ponta do norte, onde o mineiro se mistura com o baiano. 

Enfim, Marcelo alimentava desde sempre o seu sonho de ser um grande narrador de rodeios. Uma forma também de retomar um pouco sua vida. Os rodeios movimentam o comércio local, a diversão, o entretenimento, a cultura local e até a política e a religião. Imagem de Nossa Senhora Aparecida e as famílias rezando antes de dormir são bem presentes e retratados no filme. 


Nossos sonhos são fortalecidos pelo nosso cotidiano 

Uma lição que Marcelo nos deixa e com muito talento, é que os sonhos que a gente alimenta, eles só são fortalecidos se eles fizerem, de certa forma, parte do nosso cotidiano. Não quer dizer que eu morando no interior de Minas não devo sonhar com uma grande capital luxuosa, não. Isso significa que nós podemos ir onde quisermos, se nossos sonhos forem com a gente, pois é no cotidiano de nossas vidas que eles acontecem. 

O discurso da ausência de amparo social e de exclusão política e econômica são nuances percebidas nas cenas. Vemos os peões com o gado em planos mais abertos com cenas que nos presenteiam com ricas paisagens e uma bela natureza. Por sua vez, os quadros mais fechamos e planos médios nos dão detalhes de uma porta, um facho de luz e cenas do cotidiano rural como os cuidados com os animais de estimação, o cachorro com carrapatos, momentos de confraternização e os poucos diálogos que acontecem. 

O longa é quase que uma vida documentada dia após dia da vida do peão. Mas, Helvécio quis traduzir de uma maneira muito natural a vida do campo, a lida da roça. Querência nos mostra, assim como Vidas Secas, que não existe a vida difícil do campo e nem a vida alegre da cidade. O que há é uma vida que é defendida com muito mais ênfase que a outra. O que existe é um estilo de vida e de moradia que insiste em se sobrepor sobre a outra ao ponto de afirmar que uma é ultrapassada e que a outra é a nova sensação do momento. 

Aqueles que não se encaixam no “novo estilo de vida”, estão fora da roda do comércio, das políticas de desenvolvimento e da globalização tecnológica. 

Querência teve sua estreia mundial no Festival de Berlim e também passou por outros festivais europeus na Polônia, França e Portugal antes de chegar ao circuito comercial. No Festival Internacional de Cinema Jeonju, na Coreia do Sul, o longa ganhou o troféu de melhor filme. Chegou aos cinemas em dezembro de 2020 e hoje o longa-metragem está disponível no catálogo da Netflix. Confira! 




“Tudo foi discutido de acordo com a vida deles. Não gosto de me impor muito. Se colocasse coisas minhas na boca deles, soaria estranho. Então, tudo é de acordo com a vivência deles. Claro que tem o link dramatúrgico, uma curva dramática do roteiro, mas quase tudo ali é real” 

(Helvécio, em entrevista ao EM)



Por Dione Afonso 

Jornalismo PUC-Minas

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