07 Sep
07Sep

A metáfora do título não é por acaso. Uma vez que o filme que estreia Zoë Kravitz na direção é uma crítica indireta à cultura do cancelamento e ao abuso de poder. O filme é criativo, cheio de imaginação e se encharca em situações inusitadas de experimentos antissociais e malucos. Há alguns elementos que podem ser chamados de clichês na obra de Kravitz, e um deles é a famosa cena de que, neste lugar não é permitido o uso de celulares. Para se “afastar do mundo lá fora”, deixe lá fora o que é de lá, e aqui, “conecte-se apenas com você mesma”. Um clichê que na direção da jovem cineasta caiu como uma luva e nos chamou a atenção. A estreia da atriz na direção é muito bem-vinda e nos proporciona uma certa originalidade diante de uma narrativa já conhecida. 

A trama nos apresenta Frida (Naomi Ackie), uma garçonete que recebe um “convite de última hora” de um gostosão bilionário, CEO de Tecnologia Slater King (Channing Tatum) para passar alguns dias de férias numa ilha particular. Nesta ilha Frida conhece outros bilionários, artistas famosos, modelos que também estão lá pelo mesmo objetivo: esquecer da turbulência social e da pressão que o sistema nos subjuga. Frida também leva sua melhor amiga Jess (Alia Shawkat), aquela personagem que nos proporciona a comédia perfeita até o prenúncio de terror. Ao lado de Tatum, Ackie e Shawkat, ainda contamos com o brilhantismo de Adria Arjona, Christian Slater, Julian Sedgwick e mais. 


Narrativa simples, mas nada simplista 

Quando Kravitz opta pela simplicidade dos fatos, ela não desmerece o tamanho da história que está disposta a contar. Assistir a abertura do filme com uma Frida, num banheiro apertado, perdendo a noção do tempo olhando os reels no celular, já é algo assustador. A batida da amiga Jess na porta nos faz pular da cadeira de susto. A essência da recém diretora está aí! Nesta cena encontramos todo o potencial de uma mulher que está disposta a vir para ficar e disposta a mudar alguma coisa nessa realidade tóxica em que vivemos. Todo o seu filme já vale somente nesta cena. Se você não se convencer ali, estará perdendo uma experiência incrível. 

É impressionante como que este ano de 2024 temos encontrado novas experiências de mulheres cineastas se decidindo arriscar na seara da direção. Há pouco tempo, vivemos a perturbadora jornada em Os Observadores, na qual Ishana Shyamalan bebeu da fonte de seu pai e conseguiu nos entregar um terror psicológico de qualidade e medo. Agora, Kravitz embarca no mesmo gênero e não se contenta em, apenas nos assustar, mas pretende colocar suas atrizes num lugar em que são exploradas, abusadas, servidas de experimento social e depois, apaga tudo da mente delas e finge que nada aconteceu. 

Kravitz se preocupa com a originalidade, portanto, as ilusões das mulheres correndo de vestido branco, à noite, no gramado é algo que nos tira o conforto e nos coloca numa zona de perigo: para onde elas correm? Correm de quem e do quê? Que perigo as ameaça? Por que não temos acesso ao desfecho da cena? São perguntas que ficam em nossa memória e não ocasionalmente, a diretora não se preocupa em nos oferecer a receita pronta. Talvez os questionamentos façam parte de seu propósito. E isso é ainda mais perturbador. Infelizmente, algo que nos tira um pouco da experiência é encarar Tatum fazendo o papel de um vilão. Acabamos de vê-lo incorporando o personagem fictício da Marvel, Gambit, mas nossa memória, quando vemos seu nome, nos remete a outras experiências como Magic Mike (2012-2013), Ela Dança, Eu Danço (2006), Cidade Perdida (2022), títulos que têm seus momentos, mesmo sendo um pouco questionáveis. 


A grandeza dos detalhes 

E são muitos, mas o que mais nos impressiona é o vermelho. Objetos, tecidos, móveis, e pequenos detalhes na cor púrpura que nos chama a atenção. Um detalhe da cinegrafia que foi muito bem trabalhado e fotografado para que a obra geral ganhasse peso. Zoe Kravitz estava escrevendo este roteiro desde 2017, momento em que o movimento MeToo estava em alta e evidenciava as acusações contra Jeffrey Epstein por tráfico sexual. Em Pisque Duas Vezes, vemos como que uma pessoa com demasiado poder é capaz de controlar, explorar e maltratar outras pessoas simplesmente por motivações cruas e fetichistas. O ser humano sente prazer quando subjuga outros, ou quando coloca outras pessoas debaixo de seus sapatos. 

Veja bem: no elenco, entre as celebridades “presas” naquela ilha, há também homens, mas o tratamento com eles não é semelhante ao das mulheres. Não vemos nenhum deles sofrendo algum tipo de esquecimento, ou de experimento, ou ainda de perturbação. Por que será? Por que a direção não os colocou nas mesmas condições? Nós nos lembramos que um deles acordou no outro dia com um olho roxo sem saber o motivo, mas, o roteiro não se preocupou em nos dizer porquê. E a ausência desta informação não nos fez falta. O filme termina de uma forma inesperada: Frida acaba assumindo as rédeas da situação, e, agora quem controla e usa o poder sobre outras pessoas é ela mesma, contudo, ela tem o intuito de controlar uma única pessoa: Slater King.




Por Dione Afonso  |  Jornalista

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