10 Aug
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O núcleo narrativo de uma novela, geralmente se caracteriza por história única. Seus capítulos são entregues ao público numa única sequência, sem as amarras episódicas e de temporadas. Já na série de TV (geralmente veiculada em plataforma de streaming) encontramos várias narrativas que podem ser exploradas em episódios individuais e desenvolvidos em temporadas. Pedaço de Mim, disponível pela Netflix é uma série brasileira que tem um caráter novelesco numa estrutura serial. Parece confuso, mas basta compreendermos que estamos diante de uma narrativa que assume o jeito de novela, mas que é veiculado no formato de série de TV. Uma coisa não anula a outra e uma não desclassifica ou tira o mérito da outra. A produção em questão acertou em sua forma e estrutura com narrativa bem apropriada. 

Juliana Paes é Liana, uma mulher que vive um feito científico “impossível”. Vítima de um estupro, ela se depara com um fenômeno chamado de super fecundação: grávida de gêmeos de pais diferentes, Liana se vê diante de uma turbulência familiar em sua vida. Casada com Tomás Rosenthal (Vladimir Brichta), seu casamento enfrenta diálogos pesados sobre fidelidade e maternidade. Tomás precisa lidar com seus filhos, tratando-os igualmente, contudo, sua natureza paternal não consegue abraçar Marcos e Mateus como verdadeiros filhos dele. Liana lida com uma amizade com Débora (Martha Nowill), irmã de Oscar (Felipe Abib) fragilizada, após o episódio violento. Oscar não assume o erro e Liana se fecha. Rompe com Débora e tenta seguir sua vida com os filhos. 


Uma ficção com traços da realidade 

A obra foi criada e escrita por Ângela Chaves com colaboração de Guilherme Vasconcelos, Laura Rissin e Marina Luísa Silva e, tem direção de Vicente Barcellos, Clara Kutner e Maria Clara Abreu. Com Marcos (José Beltrão) e Mateus (Pedro Manuel Nabuco), já na fase da juventude, a telenovela começa a ganhar outras camadas e a se envolver mais nas suas narrativas. Digamos que há duas viradas de roteiro cruciais: a primeira é com a prisão de Tomás, culpado por matar Oscar; e, a segunda é a soltura de Tomás e sua “rápida” adesão a uma religião pautada na Bíblia e na verdade do Evangelho. Liana precisa lidar com um contexto em que a mulher está sendo julgada, diminuída e injustamente linchada por não viver com a verdade de sua vida. Os filhos lidam com os julgamentos da escola e precisam fazer uma escolha se defendem, ou não a mãe. 

Na outra ponta desta narrativa, encontramos a irmã de Tomás, Silvia Rosenthal (Paloma Duarte) e seu filho Inácio (Bento Veiga) que perdeu a visão ainda na adolescência. Inácio protagoniza uma forte história de superação e de crítica social a favor da acessibilidade e de um mercado de trabalho que ofereça oportunidades iguais para todos poderem construir suas vidas, não importando suas limitações. Inácio é um jovem com deficiência visual que encontrou sua profissão, profissionalizou-se, encontrou o amor de sua vida, casou-se, construiu sua família e vive como qualquer outra pessoa. É preciso elogiar o trabalho dos atores Bento Veiga e Paloma Duarte, que conseguiram transmitir tanto sentimento e verdade com seus personagens. 

A telenovela é uma ficção com fortes traços da realidade atual. A família Rosenthal é uma família de advogados que, nem sempre agem conforme a lei e vivem de extorquir poderosos e políticos para favorecer um ou outro. A prisão de Tomás não favorece ao perdão e à reconciliação com Liana e os filhos, muito pelo contrário. Ali, o detento passa por uma lavagem cerebral e o coloca numa posição de louco e demente com uma falsa crença na Bíblia e na verdade. O discurso final do filho Mateus é um abrir as cortinas para uma religião que não segue a pauta do Evangelho, mas que segue os benefícios próprios e que serve de âncora para agredir, e maltratar aquele na qual, você sonha em se vingar. 


Cada história, uma história 

Liana é a peça central deste quebra-cabeças. Várias são as narrativas desta novela – que assume esta estrutura serial – mas que não tem vergonha em se assumir. É Liana quem abre e fecha esta história. É Liana quem sofre violência sexual; é ela que se cala; é ela que sofre e se envergonha pelo o que aconteceu e, só ela é quem pode abrir a boca e falar, jogar para fora afim de se libertar de tudo. Aqui, ainda encontramos outro núcleo familiar narrativo que é o casal Betina (Dani Ornellas) e Sérgio (Nando Cunha) que sonham com a adoção. Adotam Júlia (Agatha Marinho) que, também nos traz camadas duras sobre a vida de uma jovem e bonita e que sofre os maus tratos de homens tóxicos na sociedade. 

O desfecho de Pedaço de Mim muito nos ensina sobre família, laços de sangue e amizade. Marcos e Mateus são quem roubam a cena nos episódios finais quando enfrentam tudo juntos, um do lado do outro; até mesmo quando brigam, um defende o outro. Liana reata com Débora e não deixam que um violento possa interferir numa relação de amizade que faz tanto bem. São 17 curtos episódios que te levam de volta às experiências novelescas de fim de tarde que vai te fazer rir e chorar na mesma proporção; vai te fazer feliz e triste na medida em que sua própria vida possa aprender algo com o que está sendo dito e narrado, até porque, quantos de nós não vivemos em pedaços por aí, sofrendo por não conseguir juntar e viver uma nova história...




Por Dione Afonso  |  Jornalista

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