Em 2020, quando o mundo estava imerso numa pandemia de Covid-19, grandes sucessos se destacaram nas plataformas de streaming. O Poço foi um desses sucessos. Filme espanhol marcou a chegada do diretor Galder Gaztelu-Urrutia com seu primeiro longa-metragem. Uma fábula feita para o seu tempo, a obra retrata um grupo de pessoas que, “presas” num estilo de prisão vertical, precisam sobreviver comendo o necessário toda vez que uma plataforma de comida para por exatos 2 minutos diante deles. A metáfora é boa e nos remete a conselhos de caridade e solidariedade essenciais: não reter comida para si, correndo o risco de receber punições; não comer aquilo que não foi feito para si, alimentando-se apenas do prato que pediu e respeitar cada nível com suas necessidades.
Agora, quatro anos depois, o cineasta espanhol nos faz voltar “ao poço”. Com a mesma premissa do anterior e repetindo as regras e cenas, o novo trabalho decide partir por outros caminhos. Considerado como um filme de terror por conta dos elementos do cinema gore – ainda mais presente neste segundo – O Poço, é mais parecido com uma narrativa de drama que expõe pessoas com seus traumas e seres humanos que são postos à prova diante do que sentem e do que são capazes de fazer quando se tem um outrem para pensar. Zorion Eguileor – que estava impecável no primeiro filme – retorna em seu papel como Trimagasi mantendo o mesmo semblante sereno e hostil. Quem rouba a cena é Milena Smit, que vive Perempuán e Hovik Keuchkerian como o sociopata Zamiatin. Parceiros de “cela”, Perempuán busca O Poço para se curar de uma culpa e Zamiatin, só quer ter sua pizza todos os dias.
Por mais que a sequência não nos agrada e nos faz cair num tédio inevitável. No primeiro filme, vimos que a sociedade que nos acolhe sofre de um sistema deplorável de ambiciosos e privilegiados. Há classes dominantes e que controlam e desfrutam de todos os bens, inclusive de forma desordenada, enquanto outros muitos sobrevivem de migalhas e sofrem com a fome, o desemprego e a falta de oportunidades solidárias e de serviço humanitário. Já o filme deste ano, o cineasta espanhol evolui nesta discussão: na premissa de O Poço 2, surge uma espécie de líder espirituoso e uma Regra Solidária que tenta garantir que a plataforma chegue com comida até os mais de 300 níveis da prisão vertical. Contudo, a regra não é cumprida, como em nossas comunidades reais, e isso chega num ponto de colapso estourando numa rebelião.
Urritia parece nos alertar para um sistema normativo que não consegue garantir o que a Constituição de cada país reza para seus cidadãos. Não é um conjunto de leis que garantirá a harmonia, a fraternidade e a boa vivência fraterna e comunitária entre nós. Há uma crítica social pertinente no longa que nos mostra que o que vivemos hoje é uma guerra pelo mais forte, mais poderoso e mais rico. Estes estão nos primeiros níveis do poço, enquanto os fracos e vulneráveis estão nos níveis mais abaixo e os miseráveis, nos últimos níveis. Sim! A sequência não é boa, contudo, não podemos deixar de ressaltar que a crítica é relevante, bem construída e que merece nossa reflexão.
Perempuán se destaca com sua personalidade emocional e fugidia. Uma jovem que só quer tempo para se curar do mal que provocou, busca no sistema prisional apenas um silêncio e distanciamento para o auto perdão. A atuação de Smit se iguala no brilhantismo da atuação de Eguileor do primeiro filme. Em 2020, vimos nele a presença de um ancião que fala pouco, gasta pouca energia e tenta manter a tranquilidade. Agora, vemos em Smit uma jovem ferida, introspectiva e que tenta buscar redenção diante do mal que causou. Em ambos os filmes temos um final sem esperança. Em síntese, sua mensagem é clara: o colapso social, humanitário e ecológico se aproxima e com isto, também pode estar próximo o fim de uma comunidade planetária viva e integrada, baseada em valores fundamentais para que o sistema social não se deteriore.
Por Dione Afonso | Jornalista