09 Dec
09Dec

Recentemente todo o mundo teve que passar por um momento de caos nunca visto antes, ou se viu, pelo menos para a nossa geração foi algo assustador: a pandemia de Covid-19 que isolou todos e tudo de qualquer tipo de relação, convivência e de companhia. Foram meses de muita dor, mortes, brigas, solidão e o pior de tudo: da falta de confiança um no outro. A maioria de nós mantivemos aquele discurso em “tentar sobreviver com o que é essencial”, mas na prática tentávamos, a todo custo, nos servir do supérfluo e grande parte das pessoas tentaram manter o mesmo nível de vida como se a pandemia não estivesse acontecendo. 

É nesse contexto, no ano de 2020 que Rumaan Alam, escritor americano, lançou o best-seller O Mundo Depois de Nós, que tenta retratar a seguinte questão: se o mundo hoje fosse acometido de um grande colapso, nós teríamos facilidades de confiar nas pessoas à nossa volta? E aí, acompanhamos duas famílias tentando verificar se isso é possível. Agora, o streaming resolveu adaptar o romance de Alam para as telas. No filme, a família de Amanda e Clay (Julia Roberts e Ethan Hawke) com seus dois filhos, Rose e Archie (Farrah Mackenzie e Charlie Evans) decidem tirar uns dias de férias e saem da agitação da cidade grande e vão para uma casa à beira mar que alugaram para uma temporada. É aí que coisas estranhas acontecem: o Wi-Fi cai; um navio petrolífero invade a praia quase matando os banhistas, um apagão; animais silvestres aparecem na propriedade da casa e uma família estranha aparece procurando abrigo... e aí? Dá pra confiar? 


Desconectados: da tecnologia e da humanidade 

O evento apocalíptico coloca os EUA no centro da discussão. O primeiro sinal “do fim, talvez?” é a perda de conexão da Internet. A filha do casal, Rose, é uma garotinha viciada em séries, os diálogos tidos com ela são sempre muito profundos e de inteligência aguçada. Ela não vive sem seu dispositivo tablet, onde ela acompanha as séries de TV e no momento é interessante a fissura da garotinha em assistir o episódio final de Friends, sitcom americana. Amanda é uma vendedora publicitária e odeia seu trabalho, em certa altura do filme ela lamenta pelo trabalho que realiza e diz que sua função é uma grande mentira. Seu marido, Clay é professor universitário e um homem de extrema calma – até demais – em relação a tudo o que acontece e, segundo a esposa ele é alguém que ainda acredita na humanidade. 

Ficar sem a conexão nos celulares foi o primeiro grande impacto. O que fazer sem internet? Como sobreviver? As crianças ficam perambulando de um lado para o outro procurando algo pra se distrair. Rose, que sofre de profunda ansiedade fica inconformada com o que está acontecendo. Até que, de repente aparece na porta dois estranhos procurando abrigo: pai e filha, George (Mahershala Ali) e Ruth (Myha’la). O primeiro contato já gerou estranheza e desconforto. George e Ruth empreendem um discurso sobre racismo e privilégio branco. A jovem Ruth não se conforma em aliar-se a uma família de classe média favorecida, branca e rica para tentarem juntos, buscar uma maneira de compreender tudo o que está acontecendo. 

Desconectados humanamente, as pessoas, diante do caos e dos riscos de vida, não compreendem que somar forças pode ser o grande mistério e a mais eficaz arma para sobreviver. A pequena Rose, que no ato final do filme desaparece, ela surge depois numa outra casa nos arredores – vale destacar que são maravilhosas mansões – onde ela encontra comida, muita comida, água e, pasmem, um subsolo equipado com tudo o que é preciso para sobreviver numa catástrofe mundial e o que ela faz? Ao invés de ir correndo avisar aos outros que ali tem recursos para sobreviver, ela senta diante da TV e assiste ao seu tão aguardado final de Friends.  


Qual é o nosso maior medo? 

Há bem pouco tempo, quando perguntávamos às pessoas qual era o seu maior medo, muitos respondiam, quase que unânime: ficar sozinho! Hoje, parece que essa resposta não se configura mais ao medo atual, mas, sim, ao sonho de todo mundo: ficar sozinho. A esquizofrenia que Alam propõe e que a direção de Sam Esmail decidiu nos mostrar é algo que nos assusta, mas não nos faz nos mexer: quer dizer, é como se nós soubéssemos do que está pra acontecer, mas que não nos assusta. Como se não fosse o bastante para nos fazer levantarmos e decidir por uma mudança de vida. Aí, nascem as conspirações: coreanos ou iranianos hackearam os satélites da Terra e desconectou todo o mundo; norte-americanos estão tentando controlar o mundo; grupos poderosos de terroristas estão em busca de dominação... e por aí vai. Este é o famoso: colocar a culpa em alguém já que nenhum de nós nos sentimos culpados. 

A decepção por não encontrarmos um final pra tudo isso é uma metalinguagem, pois o fim já o é. Tudo isso já é o fim! O romance quer nos mostrar e, Esmail leu isso muito bem, que nós já estamos no precipício, já estamos vivendo tal colapso. Portanto, quando um estranho bate à sua porta, nossa primeira reação é desconfiar de tudo e de todos. O outro torna-se nosso inimigo, quando, na verdade, pode ser nossa salvação. O Mundo Depois de Nós, ironicamente e de forma trágica nos mostra que não haverá nada depois de ninguém mais. E que quem fez com que isso acontecesse fomos nós mesmos. Mergulhados em superficialidades e se esquecendo do essencial para a vida humana e a sobrevivência do planeta, condenamos tudo, todos e a nós mesmos ao fim.

Seria muito injusto terminar este artigo sem mencionar a fantástica fotografia que Tod Campbell fez. O filme já começa com um plano aberto maravilhoso de uma casa em tom de azul frio e sem vida, mas ao mesmo tempo muito forte e, que sem notarmos, aquela primeira cena da casa de Amanda e Clay ditou todo o resto do filme: sombrio, triste, sufocante, e de ambiente carregado e de fobias. Percebe-se também, em cenas como a do navio invadindo a praia, o avião mergulhando no mar, as cenas na floresta, os flamingos na piscina grandes referências ao cinema clássico e, sobretudo, a Alfred Hitchcock. Vale a pena ver este filme só por essas fotografias que se destacam como verdadeiros quadros de pintura.



Por Dione Afonso  |  Jornalista

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